“Lisboa não é uma cidade amiga das crianças”: carros em excesso são o principal obstáculo

Junho 7, 2024 às 8:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
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Notícia de A Mensagem de 31 de maio de 2024.

As crianças já não são as mesmas, mas a cidade também não e há uma relação clara entre ambas. Neste dia mundial da criança, Frederico Lopes, investigador sobre o planeamento de cidades para os mais miúdos, lembra porque Lisboa ainda não é uma cidade amiga das crianças e como o ponto de partida deve ser a redução do tráfego automóvel.

por Catarina Reis

Como é que a Lisboa em que crescemos molda os adultos que seremos? O imaginário de uma cidade atual não é o mesmo de há mais ou menos 30 anos e é já diferente também daquele que tínhamos há um ano. A mutação é constante e quem cresce nela, as crianças, traça a vida em função dessas mutações também. Por isso é que o especialista Frederico Lopes diz que não se pode falar dos desafios da infância sem falar que cidade é a nossa hoje.

Em 2015, um estudo internacional sobre mobilidade infantil dava conta de que Portugal tem dos pais mais protetores. Um ano antes, Portugal estava em 10.º lugar no Ranking internacional de Independência de Mobilidade de Crianças. E os últimos Censos dão conta de que metade das crianças portuguesas vai todos os dias de carro para a escola.

Há muito que Frederico Lopes estuda a relação entre a criança, a mobilidade ativa e o ambiente urbano, sendo ainda cofundador da associação “1,2, 3 Macaquinho do Xinês” que trabalha na promoção e provisão do brincar no espaço público e no espaço escolar. Integra também o consórcio Brincapé, o qual resulta de uma parceria de trabalho entre o 1,2,3 Macaquinho do Xinês e a APSI – Associação para a Promoção da Segurança Infantil.

Estes estudos dão-nos algumas pistas sobre como uma criança vive a cidadeLisboa ainda não é uma cidade amiga das crianças?

Eu não acho que Lisboa seja ainda uma cidade amiga das crianças e até acho que, antes de chegarmos ao conceito das cidades amigas das crianças, temos que começar por criar espaços amigos das crianças.

No primeiro grande estudo sobre a independência de mobilidade das crianças e dos jovens, em 2012, percebemos que a esmagadora maioria das crianças e dos jovens se desloca entre a casa e a escola… de carro. O que pressupõe serem acompanhados por adultos e, naturalmente, levanta questões, nomeadamente de autonomia, independência destas crianças.

O que acontecia ainda na minha geração, quando era criança, quer em contexto rural, quer mais urbano, era que as crianças desde uma idade mais precoce tinham uma organização implícita com outras crianças. Entre os moradores, entre os pais, entre a relação que se tinha com o espaço público, e que possibilitava que efetivamente as crianças fizessem esse transporte, essa deslocação, de forma autónoma, a pé.

Essas deslocações raramente seriam feitas sozinho. A pessoa pelo caminho encontrava sempre outras crianças, outros pontos de referência. Havia uma espécie de rede de acompanhamento mútuo, uma comunidade. E isso refletia-se no que acontecia depois de as crianças terminarem as suas atividades letivas, quando passavam muito tempo com outras crianças a gerirem entre elas o seu tempo na rua.

Mas a cidade também mudou, os nossos bairros mudaram…

Mudou. Considerando as transformações que foram sendo sentidas na sociedade e na forma de organização do trabalho, da família, do lazer e da recriação, especialmente nas cidades, foi o surgir de uma outra variável: o incremento do tráfego automóvel. As cidades crescerem em função disso. E isto é precisamente apontado nos inquéritos, nos questionários, nos estudos, como obstáculo principal para que os pais se sintam seguros, para permitir que as crianças possam deslocar-se com autonomia e usufruir do espaço público.

Muitos dos pais dizem que o trânsito é um dos principais obstáculos, mas são os pais que também transportam as crianças, portanto eles também fazem parte desse obstáculo, do problema. E, ao mesmo tempo, também terão que fazer parte da solução. Por isso é que a discussão do direito das crianças à cidade tem que passar por envolver os adultos. Se os adultos não tiverem uma experiência positiva do fruir do espaço público, tendo como condição essencial o andar, essa disponibilidade, não se sentem seguros para o transmitir às crianças.

Porque é que é tão importante falarmos do papel da cidade na autonomia das crianças?

Eu vou falar daquela importância que é a menos falada, que é dar visibilidade à infância: as brincadeiras, as culturas da infância, a forma como as crianças se movimentam pelos espaços, a forma como elas, na sua relação que têm com o espaço e com as pessoas e com os objetos e com os recursos, vão produzindo lugares. Porque os lugares surgem dessa relação que as crianças estabelecem com eles.

As crianças hoje passam a maioria do tempo na escola, é o lugar delas. Isto levanta outra questão: o tipo de escola que temos, muito virada para as quatro paredes. Fica de fora das rotinas das crianças tudo o que sejam espaços que existem, por exemplo, em trajetos de casa-escola, trajetos da vizinhança, aqueles espaços mais informais, onde, se forem reunidas as condições necessárias, nós vamos ter crianças a movimentarem-se de um lado para o outro e formas de brincar que, se calhar, muitas pessoas mais velhas iriam reconhecer. Aquela ideia de brincar na rua não acontecia só no parque infantil. Mas hoje os carros estão em todo o lado e estacionados de forma abusiva. Temos de começar por aqui.

Disso depende futuros adultos mais autónomos?

O que os estudos nos mostram é que as crianças que nas primeiras idades estão em contacto com contextos mais desafiantes tornam-se mais resilientes, mais capazes de gerirem uma série de situações complexas e de compreender melhor qual é a sua posição e a posição dos outros. E tornam-se também, forçosamente, mais colaborativos, mais solidários com o outro.

Uma cidade que as convida a brincar permite mais condições para estar cá fora, para passear, para conviver. E a convivialidade implica pessoas diferentes, de proveniências diferentes, de idades diferentes, de condições diferentes se juntarem e, pelo usufruto do espaço público, negociarem o uso desse espaço. E é daí que se chega a esta ideia da urbanidade, é um bem comum, que é maior do que a minha pertença individual.

E não nos podemos esquecer que uma zona que é boa para as crianças responde a uma série de critérios que permitem às outras pessoas, outros grupos, também usufruírem daquele espaços, como aqueles que circulam em cadeira de rodas – à partida, se é desenhado para as crianças, também é desenhado para quem tem mobilidade reduzida.

Aprendemos alguma coisa com a pandemia e a forma como nos habituou a relacionar com os nossos bairros?

O que nós sabemos, da literatura internacional, e agora dos estudos feitos durante a pandemia, é que houve um agravamento brutal nas condições de saúde e bem-estar das crianças. Saúde na sua forma holística: a parte do corpo físico e psicológico. E o que sabemos é que, nos últimos 40 anos, decresceram imenso as oportunidades para as crianças usufruírem da cidade e houve um aumento das psicopatologias. E, de facto, estamos com um grave problema de saúde mental no país.

Acredita que há uma relação óbvia entre este problema e a forma como vivemos a infância na cidade?

Sem dúvida. Não devemos pensar o brincar sem pensar na mobilidade das crianças. É curioso pensar: as crianças que vão de bicicleta para a escola ou que vão a pé têm experiências muito diferentes. É bom compará-las. São as duas positivas, mas andar de bicicleta é uma experiência muito mais stressante, porque têm de estar atentos aos limites de velocidade, aos carros. Há uma máxima nórdica que diz que a experiência tem de ser boa e, se não for boa, ficamos automaticamente com uma noção negativa. Por isso é que devia haver um esforço significativo para fruir dos nossos espaços a pé.

Mas eu preciso de ter um espaço que seja convidativo. Aquela ideia de conhecer a vizinhança à volta da escola, conhecer os correios, conhecer a oferta cultural, a oferta recreativa, estar lá. E isso também é uma maneira de dar visibilidade às crianças em horas em que normalmente não as vemos. Porque as paisagens ficam inscritas com a nossa presença. E elas ganham mais voz nas decisões urbanas.

Assinou documentos que nos falavam da divisão de espaços na cidade, como espaços de utopia, espaços de ação, espaços de encontro… Mas estes espaços existem ou fazem parte de um ideal de cidade? Se pensarmos na realidade concreta de Lisboa, onde é que eles estão?

Existem ou poderão existir em consequência de experiências como o SigAPÉ (autocarro humano) ou os comboios de bicicletas. Estas iniciativas fazem com que as crianças se encontrem, os pais se possam encontrar, e tragam essa utopia a espaços que não eram espaços de crianças, em horas que não são horas escolares. E há determinadas zonas que são mais apetecíveis para isso poder acontecer do que outras, claro, que normalmente são mais desafogadas, menos densas, mais verdes.

Há zonas da nossa cidade que por uma questão de organização do território, mas também por uma questão de densidade populacional, serão mais promissoras desse ponto de vista. Como Belém e o Parque das Nações, que são zonas com um potencial mais diversificado do que vemos noutras.

Mas que tipo de crianças é que estamos a falar? Que famílias podem usufruir deste espaço? Que enquadramento sociocultural? Se, por exemplo, formos para a Penha de França, uma zona já que com uma geografia totalmente diferente, sentimos uma falta brutal de zonas verdes e os espaços de encontro que existem são espaços como parques infantis. Nestas zonas era muito importante que, por exemplo, ao fim de semana, e até de uma maneira geral, os recreios das escolas estivessem abertos para serem espaços dos quais a comunidade pode usufruir. 

A ideia que temos das escolas é um espaço fechado, entre muros ou grades. Isso fecha tanto a escola à comunidade como faz as crianças pensar que, do lado de lá dos muros, lá fora, há um perigo?

Absolutamente. Isto também transmite à criança que cresce dentro deste espaço a ideia de que há alguma coisa de má lá fora, alguma coisa que deve ser protegida. E, portanto, eu ganho medo do espaço público em si, não é? O que se transmite à criança é que a maior parte das suas vivências e das suas experiências infantis têm que acontecer em lugares específicos para as crianças brincarem e não naquela perspetiva que eu dizia há bocado de conhecer o território. E, portanto, é imperativo que as escolas, especialmente as primeiras idades, passem por este processo de transformação.

Mas as famílias não são todas iguais, têm dinâmicas diferentes e, para muitas, falta tempo de qualidade para estar com os filhos. Esta discussão não é elitista?

Eu penso que a melhor forma para colocar essa discussão e torná-la para todos é através da escola. Porque aí estão todos. A escola tem aqui um papel grande. A escola e, naturalmente, as juntas de freguesia, que são o mecanismo mais próximo de contacto. 

São um veículo de enorme pressão para que esta discussão possa acontecer. Mas se nós conseguirmos trazer isto para a discussão dentro da escola, então aí conseguimos chegar a um maior número. E até mesmo os pais com vidas e com empregos muito complicados, quando decidem entre atividades a fazer com os filhos, decidem pelo que é melhor para a saúde deles – e as crianças já levaram esse ensinamento e essa experiência para casa.

Mas, claro, a mudança tem que ser maior, temos que ter um tecido empresarial e de prestação de serviços que também esteja disponível para perceber que os pais precisam de ter rotinas de trabalho mais flexíveis para poder ter esta qualidade de vida com as suas crianças. E também precisávamos ter muito maior investimento dos projetos de intervenção local.

Primeiro, era importante mapear, perceber as perspetivas que as crianças e que os adultos têm de cada um destes sítios. E era bom termos um observatório que fizesse esse acompanhamento ao longo do tempo dessas preferências e perceções, como por exemplo acontece no caso da Finlândia em Helsínquia, onde eles têm um conjunto de mecanismos que a autarquia vai promovendo para sondar o as pessoas pensam.

Quando nós olhamos para todos os estudos internacionais, nesta área como noutras, temos sempre o Norte da Europa como exemplo. Noruega e Finlândia, sobretudo. No que toca a criar uma cidade amiga das crianças, o que é que eles fazem que nós poderíamos importar?

O que eles já começaram a fazer e que nós de certa maneira estamos a iniciar é tentar resolver o problema do trânsito. Isso sem sombra de dúvida. E é por isso que a maior parte das cidades europeias – e Paris é um bom exemplo, Barcelona também – estão a passar por essas transformações. E isso nós podemos fazê-lo.

O resto tem que ser pensado à luz das nossas experiências culturais. Eles, por exemplo, são muito mais tolerantes às brincadeiras desafiantes, ao contacto com o espaço exterior. E, na Finlândia ou até no Japão, a esmagadora maioria das crianças já com 7, 8, 9 anos vai a pé para a escola. Nós cá temos isso só na passagem do segundo ciclo. Devíamos começar a trabalhar isto muito antes e é uma questão de começar a repensar o ambiente urbano, as medidas de acalmia de trânsito, o impor de limites e restrições à circulação automóvel.

E atenção que, quando eles começaram a fazê-lo, também havia resistência. O caso de Pontevedra, em Espanha, é um exemplo flagrante – e muito mais próximo do ponto de vista cultural. Ninguém queria o que eles começaram por fazer nos anos 90, mas a verdade é que depois começou-se a perceber o ganho. Mas estamos a trazer a discussão para cá, muitas autarquias têm feito esse esforço e vemos que as pessoas começam a ser um bocadinho mais ativas. Ainda que tenhamos números que nos devam preocupar.

*Texto originalmente publicado a 1 de junho de 2o23

III Encontro Multidisciplinar “A Psicologia no sistema de promoção de direitos e proteção e proteção de crianças e jovens em perigo” 13 e 14 abril no Porto

Abril 8, 2023 às 4:00 pm | Publicado em Divulgação | Deixe um comentário
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Mais informações aqui

Fórum dos Direitos das crianças e Jovens – participação de Ana Lourenço do IAC, 4 e 5 de novembro em Carcavelos

Novembro 4, 2019 às 3:05 pm | Publicado em Divulgação | Deixe um comentário
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A Drª Ana Lourenço do Sector da Actividade Lúdica do Instituto de Apoio à Criança, irá participar como moderadora no dia 5 de novembro.

Mais informações no link:

https://www.cascais.pt/formulario/forum-dos-direitos-das-criancas-e-jovens

 

Cidades inteligentes para crianças – um kit básico para inspirar comunidades e políticos

Setembro 27, 2019 às 12:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
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Texto e imagem do site Portugal Mobi Summit

Urban 95 é a iniciativa de uma fundação holandesa, que pretende disseminar boas ideias para transformar as cidades em lugares mais inteligentes para a população infantil. Há projetos de mobilidade, de agregação de dados em plataformas, de reconversão do espaço público ou de acesso digital a serviços educativos ou de saúde, que podem ser replicados em qualquer canto do mundo.

Imagine que só tem 95 centímetros de altura – a estatura média de uma criança saudável de três anos – e circula sozinho pelas ruas, usando os transportes, os serviços públicos, o comércio ou os espaços de lazer. O que faria de diferente para melhorar a sua cidade? O Urban 95 está sempre a fazer essa pergunta a arquitetos, designers, autarcas ou urbanistas de todos os cantos do mundo.

Com as respostas que recebe de volta, a equipa por detrás deste projeto seleciona as melhores ideias. E as melhores ideias são justamente aquelas que podem ser replicadas em qualquer centro urbano, esteja ele localizado na Europa, na Ásia, em África ou nas Américas.

A iniciativa, lançada em 2016 pela Fundação holandesa Bernard Von Leer, é o que permitiu publicar agora o primeiro kit básico Urban 95 – Ideias para Ação. Mais não é do que um manual para inspirar e influenciar decisores políticos a construírem cidades inteligentes para crianças que tenham menos trânsito e menos pobreza, melhor qualidade de ar, espaços públicos limpos, verdes e seguros.

O guia está disponível online, mas está ainda longe de ser uma obra acabada. Todos os anos, haverá versões atualizadas com os contributos de mais especialistas e também de qualquer pessoa com interesse nessa área.

A finalidade é promover mudanças duradouras nas paisagens das cidades, criando os melhores ambientes para o desenvolvimento motor, físico e intelectual dos mais novos. Hoje, a população infantil a viver nas cidades atinge os mil milhões, segundo os dados da Unicef e, nos últimos 40 anos, o tempo dedicado às brincadeiras diminuiu em mais de 25%, de acordo com a Academia Americana de Pediatria. Cidades carregadas de betão, pais stressados e filhos dependentes de aparelhos eletrónicos criaram gerações cada vez mais afastadas das brincadeiras ao ar livre.

É para contrariar essa tendência dos centros urbanos que a fundação sediada em Haia procura disseminar as melhores ideias para reinventar as cidades, permitindo às crianças andar pelas ruas mais devagar, parando em qualquer lugar para satisfazer curiosidades mínimas, tocando, cheirando e convivendo com gente de todos os feitios e tamanhos.

O kit bem explicado e resumido é um catálogo organizado em quatro áreas-chave – espaço público, mobilidade, serviços públicos para a primeira infância e plataformas de recolha de dados. Não se trata de um manual do género faça você mesmo, é antes o começo de uma boa conversa para originar mais ideias adaptadas às características de cada cidade.

Qualquer pessoa de qualquer parte do mundo pode acrescentar o seu contributo para as próximas edições, enviando as suas sugestões e o seu contacto para o email Urban95@bvleerf.nl. E se, por acaso, até já tem uma ideia que gostava de implementar, mas não faz ideia do que fazer, a equipa da fundação está também preparada para dar uma ajuda através do mesmo contacto.

Ao longo de quase 100 páginas, há 29 ideias para as quatro categoria. Fica aqui 1 exemplo para cada tópico só para aguçar a curiosidade.

1 – Espaço público

Parques infantis pop up – são módulos que podem ser transportados e facilmente montados em jardins, pracetas ou qualquer espaço público. Contêm jogos, livros, pinturas, insufláveis, mini tanques, brinquedos ou o que se quiser.

Na cidade de Amã, Jordânia, dois arquitetos projetaram módulos empilháveis para as crianças a viver em campos de refugiados. Em Camberra, Austrália, uma experiência de oito dias num parque pop up, em Garema Place, aumentou em seis vezes o número de crianças a brincar naquele espaço público.

O conceito é simples e já ganhou muitos adeptos pelo mundo. Há inclusive organizações não governamentais, como a Playground Ideias, que disponibiliza manuais de instruções para qualquer um poder montar um parque infantil.

2 – Mobilidade

Jogos nas paragens de autocarro – transformar as paragens de transportes públicos em lugares divertidos pode trazer muitas vantagens na aprendizagem dos miúdos. O Urban Thinkscape, na Filadélfia, EUA, é um projeto que cria oportunidades para brincar em espaços públicos, incluindo paragens de autocarro com puzzles e projeções de histórias animadas nas calçadas. Em Madellín, Colômbia, há rotas seguras desenhadas para os alunos do pré-escolar que vivem em bairros degradados. As crianças fazem o percurso para as escolas acompanhados de adultos ao mesmo tempo que jogam e ouvem música.

3 – Serviços públicos para a primeira infância

Abordagens personalizadas – embora ainda pouco explorada, a abordagem personalizada com recurso a tecnologias e inteligência artificial tem a vantagem de alcançar uma grande escala com custos reduzidos. Em Telavive, Israel, há uma plataforma digital destinada aos pais com informações sobre serviços e atividades próximos da suas áreas de residência e até partilhas de ideias e boas práticas nos cuidados infantis.

Na África do Sul, o ChildConnect usa mensagens de telemóvel para promover um programa de desenvolvimento da linguagem. Os pais recebem três sms por semana com sugestões de atividades para praticar com os bebés e crianças. A mesma lógica é aplicada no programa MumConnect, que também usa o telemóvel para promover a saúde e bem-estar das grávidas.

4 – Recolha de dados

Plataformas digitais para agregar dados sobre população infantil – As cidades têm muita informação disseminadas por departamentos, direções gerais, regionais, autarquias e outros serviços, contendo informações sobre saúde, infraestruturas ou programas destinados à população infantil que poderiam ser agregadas em plataformas digitais.

Na cidade de Ontário, Canadá, o Child Wellbeing Dashboard, usado na região de Waterloo, informa os pais sobre os planos de expansão de redes de creches e jardins de infância. Em Istambul, Turquia, a Fundação de Estudos Económicos e a Universidade Kadir Has desenvolveram um mapa para localizar bebés e crianças mais vulneráveis, usando os preços dos imóveis como referência para os níveis de pobreza. O mapeamento serve para as autarquias saberem onde devem investir mais em políticas de primeira infância.

Kátia Catulo

O bairro onde vivemos influencia o peso dos filhos

Junho 29, 2019 às 1:00 pm | Publicado em Estudos sobre a Criança | Deixe um comentário
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Notícia da TSF de 12 de junho de 2019.

Por  Nuno Guedes

A investigação descreve uma organização urbana que parece proteger as crianças da obesidade.

O bairro onde vivemos influencia a obesidade dos filhos? A pergunta, que pode à primeira vista parecer estranha, deu origem a um estudo que avaliou o peso das crianças em vários bairros de Lisboa.

A investigação, coordenada pelo Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), conclui que há uma organização urbana que parece “proteger” as crianças do excesso de peso: bairros mais recentes, com espaços verdes e menos carros nas ruas.

Ou seja, diz Margarida Pereira, uma da autoras, à TSF, “ambientes mais pensados para as pessoas e menos para os carros”.

Pelo contrário, nos bairros de Lisboa de construção mais antiga, com edifícios que incluem comércio, serviços e habitação, a proporção de crianças com obesidade ou excesso de peso tende a ser bem mais elevada.

Os efeitos anteriores foram visíveis mesmo quando os investigadores tiveram em conta na análise e nas contas o peso dos pais e o respetivo estatuto socioeconómico da família, fatores que se sabe que também afetam o excesso de peso infantil.

Porquê?

O estudo publicado na revista científica American Journal of Human Biology admite que as razões para esta influência do bairro onde se vive sobre a obesidade podem ser várias, nomeadamente a menor poluição dos bairros com menos carros, num ambiente “mais agradável, menos stressante e menos perigoso”.

Margarida Pereira acrescenta, contudo, que um dos fatores mais importantes talvez seja a possibilidade que estes bairros dão às crianças de brincarem ao ar livre, aumentando os níveis de atividade física.

Nas conclusões os investigadores pedem aos políticos que tenham em conta estes resultados pensando mais num “planeamento urbano saudável” que possa “propiciar estilos de vida mais saudáveis com impacto bastante positivo na saúde pública”.

O estudo citado na notícia é o seguinte:

The role of urban design in childhood obesity: A case study in Lisbon, Portugal

Francesco Tonucci: a criança como paradigma de uma cidade para todos

Agosto 26, 2018 às 1:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
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Fernando Moital

Entrevista de Francesco Tonucci ao site Cidades Educadoras no dia 21 de setembro de 2016.

por Raiana Ribeiro

Pensador, pedagogo e desenhista, o italiano Francesco Tonucci é uma das vozes mais ativas e influentes do mundo no que diz respeito à participação social da infância na discussão pública sobre o futuro das cidades.

Nascido em 1940, em Fano, pequena cidade localizada às margens do mar Adriático, Tonucci trabalhou como professor já na década de 60, quando pôde conhecer de perto o cotidiano escolar, experiência que deu base para a sua concepção de educação e para a crítica ao modelo escolar vigente. “A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio, portanto, ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para cada um”, aponta o italiano em entrevista exclusiva para a Plataforma Cidades Educadoras.

Sob o pseudônimo Frato, o autor publica uma série de quadrinhos em que discute de forma irônica o cenário escolar e a estrutura familiar contemporânea. “A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à minha escola de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso, considerando como o mundo mudou.”

Célebre por ter criado a iniciativa “Cidade das Crianças”, que aposta na transformação das cidades a partir do olhar das crianças que nela habitam, Tonucci defende que as políticas públicas urbanas têm como tarefa garantir o direito ao brincar de meninos e meninas.

“Para todos os estudiosos da infância e do desenvolvimento infantil, a brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de uma mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem nossa formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de vida, brincando”, afirma.

Depois de consolidar estratégias para uma Cidade das Crianças em Rosário (Argentina) e Pontevedra (Espanha), Tonucci lamenta que poucos prefeitos sejam capazes de escutar as crianças de verdade. “Há muitos que querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para sair em fotos na imprensa”, critica.

Ele postula que a escuta efetiva da criança deve servir para gerar uma mudança de paradigma, uma inversão de prioridades capaz de reverter o planejamento masculino de cidade. “Eu não quero uma cidade infantil, uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o mais novo.”

Durante a entrevista, o educador discorre sobre temas como escola, formação de professores, relação com as famílias, infância e cidade. O italiano se diz impressionado com o fato de que, ao mesmo tempo em que as crianças perderam a possibilidade de sair de casa, novas tecnologias as conectam com o mundo inteiro. “Uma criança com enorme mobilidade cognitiva não pode sair de casa.”

E analisa o conflito atual entre as crianças e seus pais. “As crianças pedem, à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem, à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões conflitivas e devemos escolher de que lado estamos”, defende.

 

Cidades Educadoras: A sua obra está carregada de críticas ao modelo escolar tradicional. Em sua opinião, quais foram as principais mudanças na instituição escolar nas últimas décadas e o que ainda se mantém, apesar dos novos contextos?

Francesco Tonucci: Acredito que a principal mudança nos países ocidentais foi o que na Itália veio a ocorrer na década de 60, com a ampliação da obrigatoriedade do ensino até os 14 anos. Antes disso, havia somente a escola que eu vivi quando era criança, uma escola para poucos. Isso porque, no final do ensino primário, por volta dos 11 anos, tínhamos que escolher se íamos para o ginásio, que nos prepararia para a universidade, ou se passaríamos diretamente para o ensino profissionalizante. E esta era a solução mais comum para a maioria dos meus companheiros – àqueles, claro, que a escola não tinha perdido no meio do caminho. A primeira reflexão, portanto, é analisar quem eram esses que seguiam estudando.

Tonucci criou o personagem “Frato” para ironizar as instituições escolares.
Crédito: TONUCCI, Francesco. Com olhos de criança. Porto Alegre, RS: Artmed, 1997.

A maioria destes meninos e meninas eram filhos de famílias de nível social alto, com algumas exceções, como eu, cujos pais não pertenciam a esta classe, mas sentiam um orgulho imenso de que seus filhos pudessem seguir estudando. Porém, grande parte desses estudantes vinham de famílias que ofereciam livros, que tinham adultos que liam, fosse por trabalho ou por gosto, eram famílias que tinham o costume de ler um livro antes que seus filhos dormissem. Eram famílias que frequentavam concertos, livrarias, que viajavam, enfim, famílias que podiam prover isso que eu considero uma formação de base.

A escola, portanto, completava essa formação. E, por isso, havia um certo sentido que ela oferecesse coisas estranhas como, por exemplo, caligrafia. Eu tinha duas notas de Língua: uma de Italiano e outra de caligrafia. E por quê? Porque uma pessoa que saía da escola e assumia um cargo profissional, como funcionário, deveria saber escrever bem, porque a maioria dos documentos se escreviam a mão. Na escola se estudava ainda a História Antiga, dos gregos, egípcios, romanos; a Geografia exótica, enfim, tudo aquilo que completava a formação de base proveniente das famílias.

Nos anos 60, então, o parlamento italiano amplia a obrigação escolar até os 14 anos. Nesse momento, teria sido muito importante que a escola se perguntasse: o que devo mudar para me tornar uma escola para todos? Entretanto, a única mudança que a escola fez foi apagar as atividades ligadas à formação para o trabalho, as oficinas, os ateliês, tudo aquilo relacionado às atividades manuais.

E a escola acabou oferecendo para todos aquilo que era para poucos.

Isso produziu um desastre, porque a maioria dos alunos que estavam nessa escola não tinham uma base cultural. E eu acredito que isso não mudou substancialmente nos dias de hoje. A escola segue sendo para poucos. O primeiro desafio, portanto, ainda é como fazer com que a escola seja para todos – e para cada um.

CE: E como isso pode ser feito?

A primeira coisa é o que Lóris Malaguzzi, criador e diretor das escolas Reggio Emilia, disse em um de seus poemas. Para ele, as crianças possuem mais de cem línguas, cem maneiras de pensar, de sonhar e de fazer, mas lhes roubam 99. Quem rouba as crianças não é, em minha opinião, apenas a escola. Acredito que ela tenha muita responsabilidade nesse processo, mas que não seja a única. E como ela faz isso?

Oferecendo pouco.

A escola diz que o que lhe interessa é saber escrever, contar, um pouco de ciência e nada mais. O resto não interessa. E, claro, os que nasceram literários, matemáticos ou científicos se encontram bem nessa proposta. Mas aqueles que nasceram bailarinas, músicos, artistas, exploradores ou investigadores ficam de fora. A escola não os reconhece e eles não reconhecem a escola.

O escritor colombiano Gabriel García Márquez dizia que aquele que nasce escritor não o sabe previamente. E que a educação deveria assumir como seu papel principal ajudá-lo a descobrir o que ele chama de seu “brinquedo favorito”. Porque apenas trabalhando sobre o que é o seu “brinquedo favorito”, ele poderá chegar ao que chamamos de excelência, ele poderá ser capaz e ele poderá ser feliz.

A felicidade é um tema que devemos propor à educação. Nos anos 70, na União Soviética, Mario Lodi, grande educador italiano e meu amigo, disse ao final de uma palestra: “A criança não é propriedade nem da família, nem da escola e nem do Estado. E, quando nasce, tem direito à felicidade”. Eu acredito que esse seja um grande programa educativo: considerar que os filhos não são nossos e que têm direito a ser feliz.

Bom, mas o que significa tudo isso? O que deveria fazer a escola para alcançar esses resultados?

Primeiro, ela deveria abrir o leque de opções, não se contentar em oferecer pouco, mas sim oferecer muito. O leque de linguagens deve ser grande e na escola deve ser possível trabalhar com as mãos, fazer música, fazer uma horta, investigar, criar poesias, inventar contos, fazer teatro. Oferecendo muitas linguagens, a escola gera possibilidades e cada um encontra o que é seu, cada um pode se dedicar ao seu “brinquedo favorito”. Acredito que esse seja um tema básico para a escola.

A escola de hoje que eu conheço está muito mais preocupada com o que falta do que com o que existe. Toda avaliação se dedica a buscar o que falta. As lições de casa têm como objetivo final ajudar os alunos a recuperar as lacunas. Pedimos às crianças que dediquem sua atenção ao que não existe, ao que falta, àquilo que eles não gostam. Ao contrário, deveríamos pedir que se dediquem ao seu “brinquedo favorito”.

Nesses últimos cinquenta anos que eu venho acompanhando as escolas da Itália, Espanha, Argentina – conheço menos o Brasil -, vejo que os governos foram tentando reformar a escola. Mudaram programas, livros, a arquitetura, mudaram os horários, enfim, mudou tudo. A única que permaneceu igual foi a escola. A escola da minha neta de nove anos é muito parecida à minha escola de setenta anos atrás. E não podemos mais suportar isso, considerando como o mundo mudou. O que aprendemos, então, é que não se muda a escola com leis. As leis e as reformas não são capazes de mudar a realidade. E como faremos então?

De uma maneira muito simples. Oferecendo a todos os alunos bons professores. Então, o que todos os Estados deveriam colocar em pauta não são mais maravilhosas reformas, senão garantir bons professores. Uma professora de Barcelona, comentando esse tema, me disse: o pior professor deve ser bom. Esse deve ser o compromisso de nossas sociedades, governos e parlamentos: reformar a formação dos professores. Os poucos países que o fizeram, como a Finlândia, mostram que o primeiro a ser feito é aumentar o salários dos professores. A segunda medida foi afirmar que nem todos podem ser professores. Na Itália, funciona exatamente o contrário: vai ser professor aquele não pôde ser algo mais. Quase sempre a decisão de se tornar professor é resultado de um compromisso de segundo nível.

Eu, por exemplo, sou formado para ser professor porque era um mau aluno. No Ensino Médio, eu não gostava da escola, nunca me suspenderam, mas eu não ia bem. E, como em minha família não havia possibilidade de que os quatro filhos fizessem universidade, o melhor dos irmãos foi para o Liceu e eu – que não tinha boas notas e achava a formação de professores fácil – virei professor.

Aqui na Itália, eu tenho uma briga grande com relação à ampliação da jornada, porque acredito que as crianças já passam tempo demais dentro da escola. Na verdade, não sei como será no Brasil, mas aqui os meninos e meninas quase não saem de casa, passam a tarde em escolas de tempo integral, fazendo música, esporte, etc., e chegam em casa com as lições de casa que a escola passa todos os dias – incluindo fins de semana, feriados e férias. Isso é um abuso da escola, porque a Convenção dos Direitos das Crianças diz claramente que elas têm dois direitos, expressos no artigo 28 – o direito à educação formal; e no artigo 31 – direito ao descanso, ao tempo livre e ao livre brincar. Para todos os estudiosos da infância, e do desenvolvimento infantil, a brincadeira é a experiência mais importante na vida de um homem e de uma mulher. Ao longo da vida, todo o cimento sobre o qual se constroem nossa formação e nossa cultura, foi adquirido nos primeiros anos de vida brincando. Além disso, brincar é a experiência que mais se parece à investigação científica e à experiência artística.

Nesse sentido, acredito que a escola deva ocupar a manhã e respeitar a tarde. Os deveres não contribuem em nada com a formação das crianças, atrapalham muito e impedem o brincar. Ao contrário, a escola deveria ser uma das mais interessadas no livre brincar das crianças, porque é assim que elas vivem experiências e emoções que amanhã poderão ser aportes à vida escolar. As boas escolas que eu conheci não enfocavam nos programas ministeriais ou nos livros, mas sim na experiência de vida dos alunos.

CE: Sobre a formação de professores, ainda há muitos desafios, considerando que nosso processo histórico nos afastou daquela que parece ser a principal função de uma escola. Por outro lado, não me parece que o senhor esteja falando de um professor fora do alcance, uma figura longínqua. Diante dessa nova/velha realidade, qual seria então o papel de um professor?  

Tonucci: O que temos que esquecer é que o papel de um professor seja ensinar. Ensinar significa transmitir parte de uma cultura dos que sabem aos que não sabem. Essa ideia gira em torno de uma ideia muito antiga de que há um vaso vazio que precisa ser preenchido. Essa hipótese é equivocada: as crianças são completas desde que nascem e possuem tudo aquilo que necessitam para viver. A questão é que cada um está cheio de competências, desejos e habilidades diferentes do outro.

Então, um bom professor é aquele que escuta e passa a palavra para as crianças porque precisa conhecer o que eles sabem. Um bom professor é aquele que favorece o trabalho entre os alunos, porque sabe que as crianças são construtoras de conhecimento, não são passivas ou apenas receptoras de conhecimento. Mas isso só será possível se a formação desse professor considerar esses elementos.

O equívoco fundamental é que, a despeito de todas as reformas educacionais, os professores saem das universidades tendo feito anotações e avaliações nas quais devem repetir o que foi dito por seus professores. E está claro que, embora os conteúdos sejam modernos, isso não é suficiente para prover uma formação em conexão com os dias de hoje.

Dentro de uns anos, esse professor se encontrará em frente a uma sala de aula de 30 ou 40 crianças, pensando: o que faço agora? E retomará os últimos quatro, cinco anos de sua formação, sem encontrar nada que lhe seja útil para este tempo histórico. E o que fará, então? Retomará o que seus professores fizeram quando tinha cinco ou seis anos e estava na escola. Essa é uma das explicações do porque a escola não muda. O único modelo que funciona é aquele que os professores viveram quando eram crianças. Essa é a melhor garantia de conservação já criada na história.

A escola de formação dos professores deveria ser, portanto, muito parecida àquela que nós acreditamos que as crianças deveriam viver, com muitas linguagens, muita investigação científica, muita criatividade, com a possibilidade de viver experiências distintas, com trabalhos em grupo e, sobretudo, com autoria.

CE: No contexto brasileiro, em que as mães estão trabalhando o dia inteiro, sobretudo as mulheres das classes mais pobres, a escola de tempo integral emerge como uma solução para essa equação de difícil equilíbrio. Gostaria de saber como a sua proposta de que as crianças tenham as tardes livres se relaciona com esses desafios contemporâneos da vida das famílias.

Tonucci: Creio que aqui se abre um tema mais complexo que é o tema da cidade. Algumas relações fundamentais, que antes estavam garantidas, se quebraram. Uma delas é a relação entre as famílias e a escola. Não sei como será no Brasil, mas na maioria dos casos não há mais uma relação de solidariedade e participação entre famílias e escola. A família está sempre em uma atitude conflituosa e está sempre denunciando o que ocorre na escola, o que deixa os professores muito preocupados. Há denúncias na Itália sobre avaliação negativa que professores deram a um estudante. Nunca conheci um bom professor que teve problemas com as famílias, porque ele sabe que uma de suas responsabilidades é ter uma boa relação com as famílias.

A outra relação que mudou é com a cidade. Antes, a cidade era o lugar das crianças. Eu me lembro que minha mãe nos enxotava de casa. Sendo de uma família humilde, ela não podia estar com as crianças dentro de casa, pois era impossível dar conta de todas as tarefas com meus irmãos e eu lá dentro. Portanto, dentro de um marco de regras claras de tempo, espaço, atitudes e de comportamento, nós saíamos de casa. Falo dessas regras porque não proponho a anarquia, proponho a autonomia. E a autonomia não é fruto do abandono, ela é resultado do amor e da confiança. Eu te deixo porque confio em você.

Isso tudo mudou completamente e hoje as famílias culpam a cidade. Dizem: “A cidade não permite a autonomia das crianças”. Eu acredito que muitas dessas razões, desses medos, não são verdadeiros ou não correspondem à realidade. E esse medo é “ajudado” muito pela política e pelos meios de comunicação, digo, a televisão dedica grande parte de seu tempo em descrever e comentar o que há de pior na sociedade. É claro que isso torna esses atos muito mais presentes, dolorosos e mais frequentes do que realmente são. Não temos dados de que as violências aumentam, mas sim que aumentam a visibilidade que têm. Outro dado é que a violência contra as crianças e mulheres não ocorre nas ruas, não é perpetrada por desconhecidos, mas em sua própria família ou por pessoas conhecidas e, quase sempre, queridas. Isso faz dessas violências ainda mais inaceitáveis, porque se aproveitam do afeto e do amor para chegar a esse resultado. Então, não me parece que seja a cidade o problema. Hoje podemos dizer, paradoxalmente, que os dois lugares mais inseguros para as crianças são sua casa e o carro de seus pais. Os acidentes mais frequentes são ou domésticos ou de carro. O melhor que podemos querer para as crianças é que saiam de casa.

Veja, repito, acredito que esse seja uma das mudanças mais profundas dos dias de hoje, a que diz respeito à queda da autonomia das crianças. Quando eu era criança, a autonomia de movimento que meu pai e eu tínhamos era quase igual. Nós dois tínhamos a bicicleta como meio de transporte e íamos circulando pela rua. A ideia de viajar não existia. Agora eu cruzo o oceano com facilidade e minha neta nem sai de casa. Ou seja, nossas experiências de mobilidade são muito diferentes. O que mais me impressiona é que as crianças perderam a possibilidade de sair de casa, enquanto as novas tecnologias lhes permitiram se conectar com o mundo e acessar informações que na minha infância eram impensáveis de se conseguir. Uma criança com enorme mobilidade cognitiva não pode sair de casa. Tenho medo que, dentro de pouco, os adultos digam que não vale à pena sair de casa porque temos esse meio que eu e você estamos utilizando para realizar essa conversa. Há momentos da vida que é preciso o toque, a briga, o contato.

CE: Quando se fala sobre o direito à cidade, nem sempre as crianças são nomeadas. Será que, ao não nomeá-las, corremos o risco de esquecê-las quando pensamos e projetamos o espaço urbano?

Tonucci: Sim. Isso significa ocupar-se de todos e não de um alguém. Essa foi a escolha ao dedicar o meu trabalho às crianças. Eu não quero uma cidade infantil, uma cidade pequena. Não quero uma cidade montessoriana. Quero uma cidade para todos. E para estar seguro de que não esquecerei ninguém, escolho o mais novo. Essa é a motivação cultural da Cidade das Crianças que, traduzidas em decisões administrativas, se trata de mudar três prioridades.

A primeira é passar dos adultos para as crianças. Os adultos e, sobretudo, os homens, tivemos a capacidade de reconstruir o que estava destruído no pós-guerra. Mas o fizemos para nós mesmos: adultos e homens. Essa cidade se desenvolveu assumindo as necessidades do adulto como sendo as necessidades da cidade. E, claro, o adulto levava consigo seu “brinquedo favorito”, que eram os carros. E as cidades assumiram características que o carro necessitava. Em relação ao desenho das ruas, foram diminuindo as calçadas e aumentando as ruas, para que os carros passassem.

A segunda é alterar a prioridade entre carros e pedestres. E isso tem um sentido profundo, porque não é apenas uma decisão psicológica, é uma decisão democrática, porque todos somos pedestres. Só depois de ser pedestre é que alguns escolhem o meio privado ou público, mas antes de tudo, somos pedestres. Portanto, inverter essa prioridade significa tornar as cidades mais democráticas. Isso implica redesenhar as ruas para que sejam, primeiro, à medida dos pedestres e, depois, das bicicletas, depois dos meios de transporte públicos e só depois dos meios privados. Quando cruzamos uma rua, temos que descer uma calçada, entrar na via e subir uma outra calçada. Ou seja, abandonamos nosso território de segurança e passamos por um caminho que não é nosso e é perigoso. Deveria ser o contrário: a calçada deveria entrar na via na mesma altura, de modo que, se eu estou com um carrinho de bebê, em cadeira de rodas, ou se levo compras, não preciso realizar esse movimento incômodo de descer e subir que fazemos hoje. O caminho dos pedestres deveria ser sempre o mesmo e os carros, que possuem motor, é que deveriam subir e descer, porque foram feitos para isso.

Algumas cidades no mundo estão assumindo essa proposta da Cidade das Crianças. Uma delas é Pontevedra, no norte da Espanha, na Galícia. O prefeito de Pontevedra disse que escutou uma palestra minha e que eu o convenci, justamente com esse argumento das prioridades. Então, seus assessores começaram a analisar as ruas dessa cidade que possui 80 mil habitantes e viram que a rua tinha, ao todo, nove metros de largura, sendo seis metros para os carros (ida e volta), mais o estacionamento, sobrando três metros para as calçadas que, divididas em dois lados, terminavam com 1,5m cada. Considerando o mobiliário urbano, os pedestres tinham cerca de um metro apenas para caminhar, o que os obrigava a andar em fila única. Então disseram: “Bom, façamos o que diz esse senhor, invertamos as prioridades!”. Como chove muito na Galícia, tomaram como base para definir o espaço dos pedestres que fosse possível passar duas pessoas com o guarda-chuva aberto. Esse foi o plano urbanístico da cidade. Somando o mobiliário urbano, chegamos à três metros de cada lado, totalizando seis metros para os pedestres. Lamentavelmente, sobraram apenas três metros para os carros. Sinalizaram todas as ruas e diminuíram drasticamente o espaço para os carros. Viram que, estreitando as ruas, a velocidade dos carros diminuía. Há estudos que mostram que, se a calçada tem menos de três metros, os carros não sobem mais de 30 km. Então, definiram que a velocidade da cidade inteira seria 30 km/h.

O prefeito da cidade, que é médico, me dizia que a 50 km/h morre um pedestre a cada dois. E a 30 km/h morre um a cada vinte. Essa me parece uma diferença importante. Com essas mudanças, eles reduziram em 60% a emissão de CO2. E são alguns anos sem mortos em acidentes de trânsito. Na itália, os acidentes de trânsito são a primeira causa de morte até os 26 anos. E os custos oriundos desses acidentes é de 2,5% do PIB. Isso indica que realizar essas mudanças implica economizar muito dinheiro e salvar muitas vidas.

A terceira é inverter a prioridade entre bairro e cidade. Claro que falar de Pontevedra a uma pessoa que vive em São Paulo pode ser ridículo, mas não é, porque São Paulo pode ser a soma de muitas Pontevedras, depende de como você olha para a cidade. Você pode projetar e olhar de cima, desenhando muitas linhas, traçando caminhos até onde você está, ou o contrário, definindo as regras que devem valer dentro de um bairro, já que todos vivemos em um bairro. Por isso, é importante garantir um elevado grau satisfatório – da felicidade que falávamos antes – dentro dos bairros. Temos que pensar que nos bairros deveria ser possível viver bem, mover-se com tranquilidade, que todos pudessem viver de forma autônoma, os idosos para comprar seu jornal, as crianças para ir à escola. Uma vez definidas as regras dos bairros, haveria que aplicá-las à cidade. Isso significa, por exemplo, que uma estrada não passaria dentro do bairro, como acontece em várias cidades italianas. Ela deveria contorná-lo. “Mas então não será reta?”, perguntarão. “Não”. “Mas se não for reta, será menos veloz?”. “Sim, será menos veloz”.

CE: Como fazer com essas prioridades sejam invertidas e assumidas por quem detém o poder da decisão nas cidades, considerando a diversidade de interesses que a compõe?

Tonucci: Nossa proposta é uma proposta política e a colocamos nas mãos dos prefeitos. São poucos os prefeitos capazes de escutar as crianças de verdade. Há muitos que querem escutá-los aparentemente, como forma de publicidade, para sair em fotos na imprensa. Nós renunciamos a todos esses dispositivos. As crianças que participam do Conselho das Crianças são escolhidas a partir de sorteio. Ou seja, não são os pequenos políticos profissionais da escola. Te digo isso porque acredito que a resposta para o que você pergunta só pode ser a participação. O interessante de incluir as crianças é que eles não têm interesses como nós, ou seja, interesse de dinheiro, de poder. Tudo isso está bastante fora do mundo infantil. Trabalhamos com crianças bem pequenas, que expressam de forma muito simples suas necessidades mais fundamentais. Nesse diálogo, acredito que um bom administrador pode encontrar força para colocar-se ao lado de todos os cidadãos, sem perder ninguém. É uma escolha de valor, porque as crianças levam consigo um conflito. E a cada proposta que fazem, abrem um conflito com os adultos.

Hoje vivemos um conflito novo entre as crianças e seus pais, porque as crianças pedem à escola e à cidade, mais autonomia e mais liberdade. E seus pais pedem à escola e à cidade, mais controle, mais vigilância e mais proteção. São duas visões conflitivas e devemos escolher de que lado estamos. Temos que saber que, se estamos com os pais, estamos contra os filhos, porque se aumenta o controle, diminui a autonomia. Mas se estamos com os filhos, não estamos contra os pais, porque quanto mais as crianças tiverem autonomia, mais autonomia terão seus pais. E isso eu aprendi observando e refletindo sobre as batalhas de vocês, mulheres. Tudo o que vocês conquistaram melhorou o mundo. E eu acredito que isso vale para as crianças também: tudo o que fazemos para que seja melhor a vida das crianças, faz com que seja melhor a vida para nós e para a cidade, como um todo.

Não é fácil encontrar prefeitos que se coloquem ao lado das crianças, porque isso os coloca em conflito com seus eleitores, que são os pais. Por isso falo com muito orgulho dessa experiências de Pontevedra, porque o prefeito praticamente retirou os carros da cidade, mas segue sendo eleito por sua população.

CE: Essas medidas parecem impor à gestão pública um trabalho intersetorial. O senhor poderia falar sobre isso?

Tonucci: Colocamos essa proposta na mão do prefeito porque sabemos que é transversal, ou seja, não deve estar dentro de uma secretaria apenas. Deve envolver a cidade como um todo, de forma intersetorial. É uma proposta para administradores inquietos, para administradores que veem que o que está ocorrendo está mal, que o que fizemos até hoje não resolveu nossos principais problemas. Creio que a Victória, uma menina de Rosário (Argentina), que participa do Conselho das Crianças, resume bem: “Tudo o que está ocorrendo é culpa dos adultos. É preciso limitar o poder dos adultos”.

Esse me parece um diagnóstico claro de como vão as coisas. E acredito que isso se relaciona com o que você falou sobre os interesses que compõem a cidade, sobre quem tem poder na cidade. É preciso reduzir o poder dos que têm poder. E as participações são a forma democrática de reduzir esse poder. Essa é uma proposta complexa porque significa renunciar à parte desse poder.

*A foto de destaque da reportagem foi gentilmente cedida por Fernando Moital.

“A criança tem
uma centena de línguas
(E cem cem cem mais)
mas eles roubam 99.
A escola e a cultura
ao separar a cabeça do corpo.
Dizem-lhe:
pensar sem as mãos
fazer sem cabeça
para ouvir e não falar
de compreender sem alegria
de amar e de maravilhar-se
só na Páscoa e no Natal.
Dizem-lhe:
para descobrir o mundo que já está lá
e do cem
eles roubam 99”
(Loris Malaguzzi, “As Cem Linguagens das Crianças”)

 

 

 

 

 

 

Encontro Internacional Cidades Amigas das Crianças – 23 de maio em Lisboa

Maio 20, 2017 às 6:28 pm | Publicado em Uncategorized | Deixe um comentário
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https://www.eventbrite.pt/e/bilhetes-encontro-internacional-cidades-amigas-das-criancas-33575185283

Seminario Cidadania, Infancia(s) e Território – 23ª Aniversario da Convenção dos Direitos da Criança

Novembro 12, 2012 às 8:00 pm | Publicado em Divulgação | Deixe um comentário
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