Neste Dia Mundial de Combate ao Bullying, um novo estudo feito no Reino Unido alerta para os perigos de agressores e vítimas da mesma família e na mesma casa virem a sofrer de problemas mentais
Arrufos e embirrações entre irmãos sempre houve. Pontapés debaixo da mesa ao jantar também. Uma ou outra cena de pancadaria também não são exceção, independentemente, das idades e do género. Mas, quando as ofensas, os palavrões, as provocações e as humilhações passam a dominar a relação entre os irmãos, o assunto perde uma eventual graça, deixando de só exasperar os pais, para ganhar contornos sérios, problemáticos e do foro psiquiátrico.
Um estudo publicado, recentemente, no Journal of Youth and Adolescence vem alertar como as agressões praticadas entre irmãos no início da adolescência vai prejudicar, quer as vítimas, quer os agressores (bullies), alguns anos mais tarde, causando danos na saúde mental de ambos. A investigação das universidades de York e de Warwick reuniu dados de 17 157 mil jovens do Reino Unido (48% raparigas), nascidos entre 2000 e 2002 e voluntários no estudo Millennium Cohort Study. Os participantes responderam ao questionário sobre bullying entre irmãos quando tinham 11 e 14 anos. Mais tarde, quando tinham 17 anos, voltaram a responder a questões, dessa vez centradas em saúde mental e bem-estar. Os pais destes adolescentes também deram respostas sobre o estado mental dos seus filhos nas três idades diferentes, aos 11, 14 e 17 anos. “Embora o bullying entre irmãos tenha sido anteriormente relacionado a maus resultados em matéria de saúde mental, não se sabia se havia uma relação entre a persistência do bullying entre irmãos e a gravidade dos resultados de saúde mental, a longo prazo”, analisa Umar Toseeb, um dos autores do estudo, a par com Dieter Wolke.
A análise aponta que, não só essa relação existe, como o problema do bullying é muito recorrente. Quando os adolescentes tinham 11 anos, 48% estiveram envolvidos nas agressões, sendo que 15% eram vítimas, 4% agressores e 29% exerciam ambos os papéis. Já aos 14 anos, 34% estiveram envolvidos em situações de bullying – a maioria (21%) tanto sofreu como praticou, 5% agrediram e 8% foram violentados pelos irmãos.
Ao agruparem as respostas, Umar Toseeb e Dieter Wolke, descobriram que, à medida que o bullying piorava no início da adolescência, mais grave se tornava o estado de saúde mental dos jovens no final desse período de vida. E os que estiveram envolvidos em situações de violência, independentemente de serem agressores ou vítimas, tinham uma trajetória emocional diferente na hora de exteriorizar os seus problemas.
Rosa Saavedra, psicóloga e assessora técnica da direção da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, discorda da utilização do termo bullying em contexto familiar. “O bullying acontece entre pares e os irmãos não são pares, são família. Mesmo que exista o padrão continuado e de repetição, de desequilíbrio de poder e uma intenção de causar mal-estar – os três pressupostos que ajudam a identificar situações de bullying – chamar-lhe-ia violência entre irmãos.” Mas, por acontecer em contexto familiar, num relacionamento permanente, em que a proximidade é maior, “o impacto, esse sim, pode ser mais acentuado”, corrobora Rosa Saavedra. A perceção da psicóloga sobre a escalada do bullying pode ser comparada à da violência doméstica, que sempre existiu, mas de há uns anos para cá existem fatores sociais e legais que dão mais visibilidade aos problemas. “Há várias décadas chamava-se violência. Hoje, o bullying é uma entre muitas formas de violência em contexto escolar, desde algo mais físico, insultar, gritar, excluir do grupo ou lançar rumores, todas com tendência a escalar. Há uma maior apropriação do conceito e da palavra.”
Ouvir as crianças é fundamental
Em Portugal, os dados mais recentes do bullying centram-se na sua variante digital, o cyberbullying, mas a panorâmica é bem mais antiga e abrangente. Metade dos alunos em todo o mundo, entre os 13 e os 15 anos, totalizando cerca de 150 milhões de jovens, relataram ter passado por violência entre pares na escola ou nas suas imediações, de acordo com relatório da Unicef de 2018. Por cá, 38% dos adolescentes (13-15 anos) reportou ter sofrido de bullying na escola nos meses anteriores; 31% dos jovens (11-15 anos) relataram praticar bullying contra os pares na escola pelo menos uma vez nos últimos dois meses; e quase metade (46%) dos jovens portugueses, entre os 13 e os 15 anos, afirmam ter sofrido bullying pelo menos uma vez nos últimos dois meses e/ou ter estado envolvidos em confrontos físicos pelo menos uma vez no último ano.
Em 2019, um em cada três jovens em 30 países disse ter sido vítima de bullying online, com um em cada cinco a relatar ter saído da escola devido a cyberbullying e violência, num novo estudo da Unicef.
“As salas de aula online significam que a escola não termina quando o aluno sai da aula e, infelizmente, o bullying também não termina no pátio da escola”, disse Henrietta Fore, diretora executiva da Unicef. Cerca de 32% dos entrevistados acreditam que os governos devem ser responsáveis pelo fim do cyberbullying; 31%, os próprios jovens; e 29%, as empresas de Internet.
Os dados mais recentes sobre as agressões online em Portugal – o estudo Cyberbullying em Portugal durante a pandemia da Covid-19, realizado por uma equipa do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, liderado pela investigadora Raquel António, não abonam muito a favor dos jovens. Em 2020, já com a pandemia a decorrer, mais de 60% dos estudantes diz ter sido vítima de bullying online mais do que uma vez durante o primeiro confinamento, período em que as aulas decorreram virtualmente. Os resultados referem-se ao período entre março e maio de 2020 e contaram com a participação de 485 alunos do ensino básico, secundário e superior de todos os distritos do País. Os estudantes LGBTQIA+ e com rendimentos familiares mais baixos foram os principais alvos de ataques.
Números que voltaram a aumentar em 2021, no segundo confinamento, para os estudantes do sexo feminino e da comunidade LGBTQIA+: 71% dos estudantes foram vítimas de bullying online durante o segundo confinamento. As respostas referem-se ao período entre janeiro e abril deste ano e foram dadas por quase mil estudantes (952) com mais de 13 anos do ensino básico, secundário e superior de todos os distritos do País. “O bullying passou dos portões da escola para ser feito 24 horas por dia através de meios digitais. As maiores vítimas destes ataques foram estudantes LGBTQIA+, estudantes do sexo feminino e jovens com rendimentos sociais mais baixos. São jovens mais sensíveis, inseguros, introvertidos, menos populares, ou percecionados como tendo alguma identidade ou característica diferente da maioria. Ser-se diferente ou mais frágil é sempre um dos gatilhos para passar a vítima, seja no espaço escolar ou digital”, afirmou Raquel António ao Expresso.
Inês Andrade tem hoje 27 anos e sente que a situação atual é semelhante à que viveu por volta de 2008, quando tinha 14 anos. Para a presidente da No Bully Portugal – que conseguiu em alguns meses dar a volta à situação, tentando enfrentar os bullies e, no fim, desprezando-os – a grande diferença prende-se com “a consciencialização da sociedade, de pais, professores, alunos e media”. “O cyberbullying é a grande diferença – é a vertente mais recente da dinâmica do bullying – em que os jovens podem até portar-se bem na escola, mas depois, online, tudo resvala em casa.”
A associação formada há 5 anos com base na metodologia americana No Bully (existente desde o início dos anos 2000 e testada em mais 500 escolas), aposta na prevenção, na resposta imediata e na resolução do problema. Para tal, esse trabalho é feito com o grupo de pares, agressores e outros colegas mais positivos; a vítima (por se sentir intimidada) é envolvida, mas só no fim. “Os bullies são bastante recetivos a esta abordagem menos tradicional, em que não se fala de castigo, de represália ou de humilhação – eventualmente só de um processo disciplinar na escola. O facto de não serem castigados, torna-os colaborativos”, explica Inês Andrade, cujas ações da No Bully têm 90% de resultados de sucesso. “Mas não chega o não ser castigado, não queremos que seja inconsequente, pois se não estamos a permitir o aumentar do problema.”
Para que toda a sociedade civil se envolva na resoluçao do problema é fundamental começar por algo simples: ouvir as crianças, ambas as partes. Incentivar à comunicação e deixá-las expressarem-se. “A prioridade é ajudar a vítima, mas também é preciso ouvir o agressor.”