Antes de mais, é preciso perceber: o suicídio não é uma doença, é um comportamento. “O que não quer dizer que a maior parte do que está por detrás de um suicídio não seja, na maioria das vezes, uma doença mental”, diz ao Expresso Ana Matos Pires, assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental, no Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Em Portugal, três pessoas por dia põem termo à sua vida – e o investimento em saúde mental na infância e na adolescência é “de uma precariedade absoluta”
Uma em cada seis mortes de pessoas entre os dez e os 29 anos em Portugal é por suicídio. Na verdade, já “é a principal causa de morte junto de crianças e jovens adultos no país”, diz ao Expresso Ana Matos Pires, assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental, baseando-se em dados europeus de 2017 do Institute for Health Metrics & Evaluation. O facto de o número de mortes ser inferior quando se é mais jovem contribui para que o suicídio seja a principal causa de morte nesta geração, mas esta é apenas uma parte da explicação.
“Uma das razões mais importantes — que se aplica tanto a crianças como adultos — é a pouca atenção que tem sido dada à saúde mental no que diz respeito à prevenção”, explica Ana Matos Pires no Dia Mundial da Prevenção do Suicídio.
A médica psiquiatra reconhece que “com a pandemia a saúde mental ganhou uma maior exposição”, mas realça que “enquanto as estratégias preventivas e de ação muito precoce não forem desenvolvidas não haverá eficácia”. E continua assim: “Se isto é verdade para a saúde mental, em geral, ainda o é mais para a saúde mental na infância e na adolescência, que é de uma precariedade absoluta — desde logo em recursos humanos. As estratégias preventivas são diminutas, a ligação à escola (importantíssima!) é diminuta, o número de pedopsiquiatras no SNS [Serviço Nacional de Saúde] é reduzidíssimo…”
Se há duas décadas o número de psicólogos nas escolas e nas universidades era reduzido, hoje “continua tudo igual e sem nenhuma articulação com os serviços de saúde mental”, defende a também coordenadora do serviço de psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.
Ainda assim, congratula-se com o facto de a reforma da saúde mental ter sido incluída no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), com uma dotação de 88 milhões de euros. “Parece que nos saiu o Euromilhões. É uma coisa nunca vista”, sublinha, acrescentando que esta é uma demonstração política da maior relevância que se começou a dar a esta área da saúde. “Finalmente se percebeu que ‘não há saúde sem saúde mental’, como diz o mote da OMS [Organização Mundial da Saúde].”
A área infanto-juvenil está contemplada no PRR, por exemplo na criação de equipas comunitárias de saúde mental para a infância e para a adolescência. “O Programa Nacional para a Saúde Mental espera que haja, em futuros Orçamentos do Estado, algum investimento a nível preventivo — nomeadamente no meio escolar e de interligação da escola com a saúde mental da infância e da adolescência no SNS.”
PANDEMIA GEROU AUMENTO DOS SUICÍDIOS? “NINGUÉM PODE AFIRMAR ISSO COM SERIEDADE”
Antes de mais, é preciso perceber: o suicídio não é uma doença, é um comportamento. “O que não quer dizer que a maior parte do que está por detrás de um suicídio não seja, na maioria das vezes, uma doença mental. Nomeadamente uma perturbação depressiva”, diz ao Expresso Ana Matos Pires. Mas o suicídio também é um problema de saúde pública, “porque é um comportamento sem retorno”. É “felizmente um fenómeno raro”, mas extremamente importante pela sua brutalidade e consequências.
Ainda assim, em Portugal três pessoas por dia põem termo à vida. A maior incidência de casos está nos homens com mais de 65 anos, do interior e sul do país (ainda que essa linha que divide norte e sul esteja a subir) e do meio rural.
O país ocupa um lugar mediano na tabela de taxas de suicídio na Europa, continente onde há uma morte por suicídio a cada 40 segundos, mostram dados da OMS. Embora a taxa de suicídio tenha estado a cair lentamente em Portugal (acompanhando a descida registada na Europa), continua a ser mais elevada do que em qualquer outro país do sul da União Europeia.
E provavelmente o número de mortes por suicídio em Portugal é superior, nota a médica psiquiatra. “Portugal tem um problema muito grande: a subnotificação”, nota. “Não há certezas de que estes números são reais e isso é um dos grandes problemas ao estudar o fenómeno em Portugal e desenvolver estratégias preventivas. Há muitas notificações de mortes violentas por causa desconhecida que nós acreditamos serem suicídios.”
No mundo o suicídio é 15ª causa de morte, com as taxas mais elevadas a serem encontradas na Europa, lê-se no estudo “Suicide time-series structural change analysis in Portugal (1913-2018): Impact of register bias on suicide trends”, publicado em 2021 no “Journal of Affective Disorders”. Hoje sabe-se ainda que a depressão aumenta o risco de suicídio em 20 vezes (seis em cada dez suicídios foram efetivados por doentes com depressão) e que o suicídio causa mais mortes do que o cancro da mama, a malária, a guerra ou os homicídios.
E qual foi o impacto da pandemia de covid-19 na evolução da taxa de suicídio? Ana Matos Pires é perentória: “Não temos dados.” E explica que não se deve comparar taxas de suicídio em curtos períodos, devendo estudar-se — ao invés — períodos de três a cinco anos.
Sobre a pandemia, recorda que no Alentejo — onde exerce a sua atividade profissional — houve alguns suicídios logo nos primeiros meses do primeiro confinamento. “Mas ninguém consegue dizer se a pandemia teve um efeito de aumento ou diminuição na morte por suicídio. Não temos dados para o afirmar.” Sabe-se apenas que houve “um aumento dos quadros depressivos ansiosos” e os especialistas temem que “o eventual aumento da doença mental possa ter como uma consequência o aumento da taxa de suicídio, mas não há dados sobre isso”. “Ninguém, neste momento, pode afirmar com seriedade que a pandemia provocou um aumento da taxa de suicídio”.
USAR A DOENÇA MENTAL COMO OFENSA? “NÃO HÁ NINGUÉM QUE ESCAPE, DA ESQUERDA À DIREITA”
Ter um dia específico para assinalar a prevenção do suicídio serve não só para prevenir o problema, mas também para o tornar mais visível. “Existe um enorme estigma não só em relação ao suicídio, mas também em relação à doença mental”, assevera Ana Matos Pires. “Não só na sociedade em geral, mas muitas vezes entre os profissionais de saúde.”
A psiquiatra recorda uma recolha que fez há três anos de discursos de deputados de diferentes partidos — e de alguns membros do Governo — na Assembleia da República desde 1972.
“Pude pesquisar palavras como esquizofrenia, demente, bipolar… É completamente transversal — não há ninguém que escape, da esquerda à direita, da ditadura aos dias de hoje — o uso destas palavras como ofensa”, conclui. “Mostra bem o estigma. Não passa pela cabeça de ninguém dizer a outro ‘seu sidoso’ ou ‘seu insuficiente renal’. Mas passa pela cabeça dizer ‘o senhor é um esquizofrénico’.”
Para Ana Matos Pires, “este é um dos grandes assuntos que a política nacional de saúde mental tem de pegar pelos cornos”. “A luta antiestigma, os maluquinhos, a desconsideração, a marginalização, continuam a ser uma realidade”, realça. E remata: “isto melhora-se com o aumento da literacia em saúde e com o investimento real na saúde mental, nomeadamente na informação sobre saúde e doença mental.