Vendas de medicamentos para a hiperatividade batem máximos em 2022

Junho 2, 2023 às 8:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , ,

Notícia do Jornal de Notícias de 22 de maio de 2023.

Fármaco para a hiperatividade foi o mais prescrito nos 10-14 anos

Outubro 28, 2022 às 6:00 am | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , ,

Notícia do Jornal de Notícias de 13 de outubro de 2022.

“Todos os dias, milhares de crianças de crianças vão para a escola medicadas simplesmente para ficarem sentadas”

Julho 31, 2019 às 6:00 am | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , , ,

i

Entrevista de Cristina Camões ao i de 16 de julho de 2019.

O que é a psicoterapia? Qual é o potencial? A psicóloga clínica e psicoterapeuta Cristina Camões tem um novo livro em que desmonta os mitos em torno do consultório. “Um psicólogo não dá conselhos”, diz.

TEXTO | MARTA F. REIS

Cristina Camões, psicóloga clínica e psicoterapeuta, acaba de publicar Psicoterapia – Um caminho para a Felicidade, em que pretende desmontar os mitos e o estigma em torno do consultório do psicólogo. Defende que há uma ideia errada sobre o que é a felicidade, que não aceita que podem existir momentos maus e que o importante é reconhecê-los e lidar com eles. Uma ideia que se incute desde criança em frases como “não chores que é feio”. Em entrevista ao i, por escrito, fala sobre os objetivos da psicoterapia e os sinais de alerta numa sociedade que toma cada vez mais comprimidos e em que a saúde mental não tem sido prioridade.

Chamou ao seu livro publicado em maio Psicoterapia – Um Caminho para a Felicidade. É sempre assim?

Poderá ser sempre se o paciente levar o processo até ao fim. Mas convém entender melhor o que é a felicidade. A sociedade costuma pensar que a felicidade é algo que se atingirá um dia e que a partir daí será permanente. Nada mais errado: somos humanos e a vida não é retilínea. Quase todos os autores são unânimes em afirmar que a felicidade não é contínua, mas antes constituída por momentos. Hoje posso estar a sentir-me feliz porque atingi um objetivo muito importante, mas amanhã poderei estar triste, pois estou doente. Por outro lado, a felicidade não advém de fatores externos, mas internos. Aqui estaremos desde logo a entender o porquê de a maioria das pessoas não se sentirem felizes. Por um lado, acham que a felicidade é algo utópico e, por outro, procuram no sítio errado. Se observarmos a sociedade, esta está cada vez mais desligada de si, do sentir e da autoconsciência. Daí o aumento vertiginoso nos últimos anos dos índices de depressão e das taxas de suicídio.

Propõe-se lançar os leitores numa viagem aos bastidores do consultório. 

Pretendo com este livro acabar com os equívocos relativamente a fazer um processo psicoterapêutico. Chegam-me pacientes que já tinham tentado fazer psicoterapia, mas que foram sujeitos a situações éticas e profissionais graves que em nada dignificam esta profissão. Torna-se condição essencial que toda a gente saiba de facto o que pode esperar de um especialista desta área e, por outro lado, que saiba reclamar o seu direito a um atendimento clínico de qualidade e alicerçado em profissionalismo.

Quais são as questões mais comuns em consulta e que a preocupam mais?

Atualmente, as problemáticas mais frequentes são a depressão clínica e a perturbação de ansiedade grave, com ou sem ataques de pânico. O que mais me preocupa é o facto de estas patologias aparecerem em idades cada vez mais precoces. Imagine o que seria se sentisse que quer adormecer e nunca mais acordar; que deseja ser colhida por um carro para não ter de ser você mesma a acabar com a vida; que falta aos exames de faculdade porque prefere não os fazer perante a hipótese de tirar má nota; que há muito deixou de sair, pois sente que não tem nada de interessante para dizer; que sente que toda a gente é feliz e você nunca conseguirá sê-lo; ou que ontem esteve pendurada na ponte a decidir se devia saltar e deu-se uma última oportunidade, vir hoje à consulta. São estes os pensamentos e sentimentos que escuto diariamente e refletem o que se passa na mente daqueles que sobrevivem com uma depressão ou perturbação de ansiedade.

Quer também com este livro desmistificar o papel do psicólogo na sociedade e da própria psicologia. O que costuma ouvir?

É importante desmistificar o papel do psicólogo na sociedade, mas mais ainda desmistificar a saúde mental. Foram-se criando alguns mitos acerca das consultas de psicoterapia. Um deles é acharem que o psicólogo irá dar conselhos, opiniões e caminhos a seguir. O psicólogo não dá conselhos, exceto se forem recomendações clínicas, de acordo com o quadro clínico. Não emite opiniões nem diz o caminho a seguir. Se assim fosse, o paciente não precisava de um especialista em saúde mental, bastaria falar com a família e amigos. A arte da verdadeira psicoterapia consiste na capacidade do psicólogo conseguir introduzir técnicas do modelo teórico que utiliza, ativando áreas cerebrais e elicitando mudanças bioquímicas que, consequentemente, levarão a mudanças comportamentais, emocionais, relacionais e estruturais no cérebro do paciente.

Porque sentiu necessidade de escrever sobre esta disciplina?

Fala-se muito de psicoterapia e quase nunca se sabe o que se diz. O meu livro não foi escrito para académicos, mas para o público em geral. A responsabilidade desta disciplina ser menos compreendida não é da sociedade, mas sim daqueles que falam daquilo que não sabem. Tenho a certeza de que, se a sociedade soubesse de facto o que é a psicoterapia e soubesse o que poderia ganhar com ela, os consultórios dos psicólogos ficariam cheios. Os filhos já não desenvolvem uma anorexia nervosa, a mãe aprenderia a ser mãe, o pai aprenderia a ser pai, as profissões eram escolhidas de acordo com o que a pessoa sente e não com o que os outros querem, as urgências dos hospitais deixavam de ser entupidas com casos de perturbações do foro psicológico, reduzindo a despesa pública drasticamente na área da saúde. Os suicídios diminuíam, os profissionais das diversas áreas eram melhores, ninguém aceitaria ficar numa relação tóxica ou de violência – a lista é infinita. Importa salientar que se trata é de um caminho a dois em que o psicólogo irá, além de tratar as patologias, ajudar o paciente a encontrar o seu sentido de vida.

Não haverá sempre recaídas, momentos de descompensação?

Os resultados são eficazes quando a psicoterapia é feita por um psicólogo especialista e se o doente não desistir do processo. Tem de ser o psicólogo a dar alta clínica. Por outro lado, como neuropsicóloga posso afirmar que, depois de ativar áreas cerebrais, o cérebro não perde as capacidades ganhas, só se existir algo externo, por exemplo um AVC ou um tumor cerebral. Todo o trabalho é alicerçado em modelos cientificamente validados, por isso afirmamos que a psicologia é uma ciência. De acordo com o modelo teórico em que me especializei, é uma condição obrigatória fazer um exame psicológico ou neuropsicológico. O psicológo não é mágico e, embora seja formado para diagnosticar, o olho clínico poderá errar. Não deve intervir sem antes avaliar cientificamente a condição psicológica do paciente. A escolha dos testes poderá variar de acordo com a idade e o quadro clínico apresentado. Depois darão origem a um relatório em que é explicado o caso clínico e o que se passa com o paciente, tal como um médico não pode operar um doente sem solicitar exames. Só depois, tendo em conta o quadro clínico apresentado, é que o psicólogo escolhe o tipo de técnicas a utilizar. São esses passos que explico no livro. Se, dentro do consultório, o paciente tivesse elétrodos ligados ao seu cérebro representado num computador (como acontece nos laboratórios de neurociências), poderíamos verificar que a ativação cerebral varia de acordo com as técnicas utilizadas.

Nos últimos anos, procurar ajuda profissional e fazer terapia passou a ter maior visibilidade. Há menos estigma ou ainda existe caminho a percorrer? 

Infelizmente, ainda se pensa que consultar um psicólogo é para “malucos”. Costumo dizer que nós tratamos pessoas que não são doentes mentais mas têm uma doença do foro psicológico, que sofreram traumas, violência ou outras situações que os impediram de crescer de forma emocionalmente equilibrada. Muitos pacientes escondem das suas famílias que fazem psicoterapia. No entanto, os média têm ajudado a desmistificar esta questão com séries televisivas. Várias figuras públicas revelam que recorreram a um psicoterapeuta e acho muito bem que o façam. Os atores, apresentadores e artistas em geral estão sujeitos a uma exposição mediática e nem sempre é fácil lidar com as consequências que daí advêm. Fazer psicoterapia deveria ser entendido como algo natural e um motivo de orgulho. Quem passa por um processo destes não se vê apenas livre da depressão ou da ansiedade, sofre um profundo caminho de crescimento e de autoconsciência que, de outra forma, seria impossível de atingir.

Defende que as pessoas ficam diferentes depois de passarem por processos psicoterapêuticos. Que transformações a têm impressionado mais? 

A pessoa que nos chega à consulta deixa de existir após o processo psicoterapêutico. Já imaginou se, a dada altura da sua vida, começasse a dizer não a quase toda a gente, a ter coragem de dizer às pessoas chatas que são chatas, a assumir os seus sentimentos verdadeiramente, a recusar sair com quem não deseja? No processo psicoterapêutico, o paciente passa por transformações que vão resultar na construção de uma nova identidade, forte, assertiva e emocional, ainda que por vezes pareça egoísta aos olhos dos outros. Mas essa é a verdadeira pessoa, aquela que deveria ter sido sempre.

A quem se destina a psicoterapia? Deve ser encarada como tratamento ou como um “cuidado de higiene mental”, portanto para todos, como defendem alguns autores?

A psicoterapia não se destina apenas àqueles que têm uma doença do foro psicológico. Poderá ser feita por qualquer pessoa. Aliás, para nos ser atribuído o título de especialista avançado em psicoterapia pelo colégio da Ordem dos Psicólogos é obrigatório o próprio psicólogo passar por um processo demorado de psicoterapia que a ordem designa como “desenvolvimento pessoal”. Nos casos em que não existe uma patologia há um caminho de crescimento magnífico que trará consequências positivas em todos os papéis que desempenha: profissional, académico, amoroso, relacional, familiar, entre outros.

A partir de que idade se pode fazer psicoterapia?

Pode ser feita em qualquer idade. Nas crianças dos 0 aos 12/13 anos (depende da maturidade da criança) chama-se ludoterapia e, a partir daí, é psicoterapia. Há psicólogos que se especializam apenas em psicoterapia infantil e outros em adultos.

Por vezes existe a ideia de que mergulhar nas emoções abre quase uma caixa de Pandora. Todos temos traumas? Não há o risco de destapar problemas que não eram relevantes?

Vivemos numa sociedade que educa as suas crianças castrando a sua capacidade de sentir o mundo. Frequentemente, ouvimos os pais dizerem às crianças “não chores que é feio”, “não penses nisso, desvaloriza”, “se te portares mal, não gosto de ti”. Fico perplexa pois, à medida que cresce e fica impregnada com este afastamento emocional de si própria e do mundo real, a criança vê-se mergulhada numa racionalidade extrema que a leva a desenvolver uma neurose. Tendo em conta o que acabei de dizer, tudo o que é dito em consulta é importante. Em cada momento, o cérebro vai descarregando as memórias passadas que escondem medos, inseguranças, sentimentos de inutilidade e desvalorização, tristeza e fobias. Vamos juntos ao fundo da caixa de Pandora. Isto irá permitir ao paciente sentir revolta, desilusão e frustração, que lhe permitirão, finalmente, reclamar para si o direito de se sentir triste, desiludido com as pessoas que julgava serem boas para si e desempenhar apenas e só o seu papel.

Como vê o interesse crescente em torno da descoberta da espiritualidade, a popularidade, por exemplo, da meditação mindfulness, e toda uma indústria em torno da autoajuda? 

É intrínseca a necessidade do ser humano de ter um sentido para a sua vida e, por outro lado, de sentir felicidade. No entanto, essa busca é tão interna e individual como subjetiva. A capacidade de evocar experiências espirituais pode estar relacionada ou não com o contexto religioso. O ser humano precisa de algo que lhe dê a capacidade de acreditar em algo. Este facto veio trazer para a sociedade novas formas de levar este caminho às pessoas, através da autoajuda, da literatura descartável ou milagreira. Na prática clínica diária verifico que o processo psicoterapêutico abre espaço mental no paciente para dar sentido à sua vida e, consequentemente, desenvolver a sua inteligência espiritual. Tal como advoga Damásio, desde que a pessoa esteja equilibrada, a felicidade poderá ocorrer através do desporto, da pintura, da música, da leitura, entre outras atividades. Cada um irá descobrir o que faz sentido para si. O importante é que entendam que, se a pessoa estiver com uma doença do foro psicológico, terá de ser tratada por um especialista da área da psicologia clínica. Os casos clínicos não se tratam com literatura de autoajuda nem com mindfulness.

Mas sente que o psicólogo tem perdido o lugar que tinha, protagonismo?

O psicólogo clínico é, antes do mais, um profissional da área da saúde. Seria muito importante que a sociedade deixasse de brincar com coisas sérias. Reitero as palavras do prof. Quintino Aires no prefácio do meu livro: “As ofertas multiplicam-se, especialmente em workshops e cursos breves que são a nova banha da cobra do séc. xxi”. Costumo dizer que a meditação e as frases de autoajuda descartáveis podem ter algum impacto naqueles que não têm nenhuma doença do foro psicológico. Aliás, nenhum doente com depressão ou ansiedade consegue fazer meditação, porque o seu cérebro está desequilibrado quimicamente e é invadido por milhares de pensamentos que o impedem de relaxar. Sinceramente, o que mais me preocupa são aqueles que, sem qualquer licenciatura em Psicologia Clínica ou Psiquiatria, se intitulam psicoterapeutas. Posso dizer-lhe que temos observado, mesmo nos média, pessoas que falam de casos clínicos na televisão, e se formos ao site da Ordem dos Psicólogos verificamos que os seus nomes não existem enquanto membros efetivos da ordem.

O último estudo feito em Portugal estimou que um terço da população tenha algum problema do foro mental. O país tem um elevado consumo de ansiolíticos e antidepressivos. Há um recurso excessivo a medicação?

A situação é altamente preocupante, não só em Portugal mas um pouco por todo o mundo. A toma de medicação psiquiátrica está a alastrar drasticamente e, na maioria dos casos, as receitas são passadas por médicos de clínica geral. Todos os dias, milhares de crianças vão para a escola medicadas psiquiatricamente simplesmente para ficarem sentadas e não perturbarem as aulas. Os estudos comprovam que é na infância que o cérebro da criança vai desenvolver-se e sofrer ativações neurológicas extraordinárias, não só ao nível cognitivo como relacional, do pensamento e emocional. O que acontecerá se o seu cérebro estiver “adormecido” nestes momentos de desenvolvimento? Estará disponível para aprender ou para se relacionar com o grupo de pares? Chegam-me casos de crianças que vão para a escola completamente dopadas, com suores frios, tremuras, dores físicas, como consequência dos efeitos secundários da medicação. Existem outros estudos que alertam para o facto de existir uma probabilidade maior de uma criança medicada na infância vir a ser um consumidor de drogas na adolescência ou na vida adulta.

Recebe muitos casos em que a medicação foi usada demasiado tempo sem acompanhamento psicológico?

Um caso muito grave que me apareceu foi um jovem de 19 anos que chegou à consulta a tomar 12 comprimidos por dia fixos e dois em SOS. Só ao fim de dois anos foi possível começar a fazer o desmame da medicação. Por outro lado, é muito fácil para os pais aceitar que o filho “resolverá” os seus problemas tomando comprimidos, demitindo-se da sua responsabilidade enquanto pais. A medicação não trata as causas da doença, mascara apenas os sintomas, porque a pessoa deixa de pensar, deixa de ter espírito crítico, vê as suas capacidades cognitivas diminuir (memória, atenção e concentração), o seu discurso fica confuso e incoerente – no fundo, afasta-se do mundo real. A psicoterapia, obviamente feita por um especialista, trata porque vai remover as causas. Costumo dizer que não somos mágicos para alterar o passado, mas vamos conseguir fazer com que esse passado deixe de interferir com o presente.

Quanto custa o acompanhamento por um psicoterapeuta? Está ainda longe de ser algo a que a maioria da população possa ter acesso?

A Ordem dos Psicólogos não estabelece um valor de honorário mínimo nem máximo. Por outro lado, o custo e o tempo de tratamento dependem de cada quadro clínico, por isso não poderei dar uma resposta objetiva. Infelizmente, os ministérios da Saúde não têm investido nesta área, levando a uma quase inexistência de psicólogos clínicos no Sistema Nacional de Saúde, e o caso ainda é mais grave quando falamos da existência de psicólogos especialistas. Qualquer valor que um paciente gaste num tratamento psicoterapêutico é mínimo relativamente à sua cura e à sua oportunidade de ser feliz. Quanto vale a vida de um jovem ou um adulto que comete suicídio e que, se fizesse este tratamento, nunca o faria? A sociedade tem de mudar as suas prioridades.

Que mensagem gostava de transmitir com este livro?

O primeiro objetivo deste livro é desmistificar a saúde mental e que todos aqueles que sofrem com doenças do foro psicológico possam encontrar a cura se consultarem um psicólogo especialista em psicoterapia; por outro lado, mostrar que no cérebro do ser humano existem todas as características e oportunidades para a cura, basta que para isso tenha a coragem de fazer esta viagem para dentro de si; mostrar também que a depressão e a ansiedade não se curam com medicação, pois esta não vai tratar as causas da doença, mas sim camuflar os sintomas, transformando a pessoa num ser dopado e alheio ao mundo.

Na visão do psicoterapeuta, a medicação nunca é necessária?

Nada disso. Há situações em que pode ser necessária, uma depressão clínica muito grave. É importante distinguir duas coisas. Por um lado, há as doenças mentais, doenças que geralmente não têm cura, por exemplo uma esquizofrenia, uma doença bipolar, uma criança autista; ou doenças do foro neurológico, como demências. Aí, obviamente que é necessária medicação. Ninguém imagina que uma pessoa com esquizofrenia não faça medicação, senão vai ter delírios, pode cometer suicídio ou até um homicídio. Nesta vertente é obrigatório ter medicação e são casos que são tratados na área da psiquiatria. Poderão beneficiar da psicoterapia não no sentido de tratar, pois são doenças que não têm cura, mas para diminuir a sintomatologia e para ajudar os doentes a lidarem com as consequências da doença e ajudarem até a família a lidar com o doente, a permitir uma vida o mais equilibrada possível. Do outro lado temos então as doenças do foro psicológico, em que se incluem a depressão, a ansiedade, uma anorexia nervosa, uma bulimia. Quando falamos de perturbações do foro psicológico, se a pessoa fizer psicoterapia não vai precisar de medicação. Mas se chegar medicada ao consultório, não vai deixar logo a medicação. Existe risco clínico. Só o médico é que pode fazer o desmame, em parceria com o psicólogo. A pessoa só poderá deixar a medicação de forma progressiva.

Por vezes ouve-se pessoas a quem os médicos prescrevem antidepressivos ou ansiolíticos mas dizem que não os vão tomar.

Não aconselho ninguém a fazer isso. Se o médico entendeu prescrever a medicação, o doente deve fazê-la. Nos EUA e mesmo em Portugal há alguns psiquiatras que se especializam em psicoterapia, mas não é muito frequente; o mais habitual é o médico usar a abordagem farmacológica. Quando digo que não trata é porque um medicamento, seja antidepressivo, ansiolítico ou antipsicótico, vai atuar ao nível das células nervosas bloqueando a passagem de informação. É quase como fazer um penso a áreas cerebrais. A pessoa fica mais calma, mas não fica tão capaz para lidar com o dia-a-dia. A crianças, não existindo doença mental, não aconselho de todo; devem procurar acompanhamento especializado. Mas é preciso sublinhar que há casos de depressão clínica em que é preferível usar medicação inicialmente e só depois, ao longo do processo psicoterapêutico, iniciar o desmame.

Há perguntas que sejam mais reveladoras nas sessões de psicoterapia? 

Não. Excetuando as questões do foro emocional “o que sentiste quando soubeste que o teu pai morreu?”, “o que sentiste quando estavas prestes a tomar aquela embalagem de comprimidos?”, “o que sentiste quando ele disse que já não te amava?”, o psicoterapeuta abstém-se quase sempre de transformar a consulta num interrogatório. A arte do verdadeiro psicoterapeuta é conseguir, com as técnicas científicas que são introduzidas na conversa psicoterapêutica, ativar áreas cerebrais e produzir neuroquimicamente neurotransmissores que levarão a um alívio progressivo dos sintomas, por exemplo, tristeza, desvalorização, sentimentos de inutilidade, baixa autoestima, pensamentos de acabar com a vida. Por isso posso afirmar que as doenças do foro psicológico têm cura com psicoterapia.

Vamos falar (a sério) de Ritalina e Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção

Outubro 29, 2018 às 8:00 pm | Publicado em Estudos sobre a Criança | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , ,

Texto e gráficos do site Scimed de 16 de outubro de 2018.

Recentemente o PAN tomou a iniciativa de apresentar na Assembleia da República projetos de resolução relativamente à prescrição de ritalina. Segundo o PAN, o metilfenidato (conhecido popularmente como Ritalina) e a atomoxetina são prescritos em excesso para o tratamento da Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). A preocupação do PAN incide sobretudo nas crianças com menos de 6 anos de idade dizendo que o metilfenidato “não deve ser utilizado em crianças com menos de seis anos (…) as próprias bulas do medicamento dizem exatamente isso, que a segurança e a eficácia não foram claramente estabelecidas neste grupo etário. Não há evidências empíricas nem da sua eficácia, nem dos seus resultados a longo prazo (…) Estamos aqui numa lotaria, a medicar cada vez mais as crianças.

Este tipo de afirmações mostra desconhecimento dos princípios e a razão da existência da prescrição off-label.

O que é a prescrição off-label?

A prescrição off-label surge quando um determinado medicamento não foi ainda aprovado pela entidade reguladora para ser usado da forma que o médico pretende. Neste caso, a indústria farmacêutica produtora da ritalina e da atomoxetina não entregou às agências reguladoras do medicamento estudos clínicos que determinem a existência de um perfil de risco-benefício favorável para estes medicamentos em crianças com menos de 6 anos de idade. No entanto, isso é extremamente frequente na pediatria.

Resulta da falta de investigação neste grupo etário devido a problemas técnicos, éticos e científicos, para além desta população não ser uma prioridade em termos financeiros para a indústria farmacêutica. Assim, ficamos com um grupo etário que necessita de diversos tratamentos, mas para os quais é escassa a investigação farmacológica. Se nos limitássemos a seguir o que está na bula do medicamento, as crianças seriam altamente prejudicadas. Não só no que diz respeito à ritalina, mas à utilização de anti-histamínicos, antibióticos, bombas inalatórias para a asma, etc.

Nos cuidados intensivos pediátricos, cerca de metade dos medicamentos utilizados são em regime off-label. Em diferentes contextos de saúde, a utilização de medicação off-label nos recém-nascidos e nas crianças varia entre 23-60%. E mesmo os incentivos institucionais recentes para aumentar a investigação na área pediátrica não tem levado à diminuição da utilização destes medicamentos em regime off-label. É uma realidade que dificilmente mudará. Não é má prática médica. Não significa que os medicamentos utilizados em off-label são prescrições indevidas. Significa que não temos informação (por diversas razões), sobre o impacto da utilização desses medicamentos, cabendo aos MÉDICOS decidir se medicam ou não as crianças e AVALIAR o impacto dessa medicação. É esta realidade que os responsáveis do PAN não compreenderam.

A perturbação de hiperatividade e défice de atenção não é doença moderna…

Existe o mito que a PHDA é uma doença da modernidade. Que a PHDA está a aumentar de forma dramática. Que a causa desse aumento é um sobrediagnóstico da doença em crianças que são saudáveis. Que as crianças não são doentes, são é mal-educadas ou incompreendidas. Que a culpa do “excesso” de medicalização destas crianças é provocada pela pressão exercida pela escola, pelos pais e pelo facilitismo dos médicos em prescrever medicação.

Isto não é verdade na maioria dos cenários avaliados. Primeiro, a PHDA tem um componente genético importante. Estudos de famílias, de gémeos e crianças adotadas demonstraram que a PHDA tem uma herdabilidade que ronda os 74%.

Se tem um componente genético importante poderemos perguntar, dadas as limitações que representa para a aprendizagem e socialização, porque é que não foi eliminada do “pool” genético através da seleção natural. Na realidade, alguns estudos levantam a hipótese de que no tempo em que éramos caçadores-recoletores, pessoas com PHDA não tinham grandes “limitações” em comparação o resto da tribo. Aliás, até poderá ter sido positivo, havendo evidências de ter sido seleccionado positivamente principalmente em populações nómadas (artigo e artigo). No entanto, estas vantagens parecem desaparecer no contexto de uma população sedentária, com métodos de ensino diferentes, estilo de vida diferentes e desafios sociais diferentes. Ou seja, o ambiente não causou o aparecimento da PHDA, mas as crianças com PHDA estão relativamente desajustadas a este novo meio ambiente. Apesar disso, existe alguma evidência que as crianças que sofrem de PHDA têm algumas vantagens mesmo neste novo contexto social, dado que parecem manifestar uma maior criatividade (artigo, artigo, artigo e artigo) o que eventualmente nos pode indicar que algumas profissões serão mais adequadas para pessoas com este problema.

Em termos contemporâneos, o primeiro exemplo da descrição de uma perturbação semelhante à PHDA foi feita num livro publicado por Weikard Melchior Adam em 1770-75. Há mais de 245 anos. Descrevia crianças e adultos inatentos,que se distraíam com facilidade, com falta de persistência para realizar tarefas, hiperativas e impulsivas. Semelhante à descrição da PHDA que fazemos hoje em dia.

Em 1798, Sir Alexander Crichton, na sua série de três livros intitulados “Uma investigação sobre a natureza e a origem da perturbação mental”, descreve uma doença caracterizada pela dificuldade em manter a atenção, uma predisposição à distração, inquietação e possivelmente algum tipo de impulsividade. Mais uma vez, semelhante à definição da PHDA (embora sem o componente de hiperatividade). Crichton até reconheceu a natureza do distúrbio e entendeu que isso poderia ser devido a uma disfunção neurológica.

Em 1844, o médico alemão Heinrich Hoffmann criou algumas histórias infantis ilustradas, incluindo “Fidgety Phil” (“Zappelphilipp”), que hoje em dia são consideradas uma alegoria popular para crianças com PHDA, dado que os livros descreviam com bastante clareza os típicos problemas de uma criança com esta perturbação. Isto serve para demonstrar que, no mínimo, o Fidgety Phil aponta para a existência de problemas comportamentais semelhantes à PHDA há cerca de 165 anos, numa sociedade muito diferente da nossa, sem TVs, iPods ou videojogos para atribuir a culpa.

Em 1902 o pediatra Britânico George Still diagnostica pela primeira vez 20 crianças com PHDA, descrevendo-a como “um defeito do controlo moral da criança“. Still referia que estas crianças tinham dificuldade em controlar os seus comportamentos, apesar de continuarem a ser crianças inteligentes.

Em 1937, Charles Bradley, tentou identificar alterações cerebrais em crianças com PHDA recorrendo a peumoencefalogramas. Verificou que as crianças após o procedimento ficavam com muitas dores de cabeça. Bradley tentou minorar este desconforto recorrendo à benzadrina, uma anfetamina. A benzadrina não tinha qualquer efeito na dor de cabeça, mas levou a melhorias dos sintomas nestas crianças em termos de comportamento, concentração e aprendizagem. Ou seja, o primeiro fármaco para o tratamento da PHDA foi encontrado por engano.

Bradley posteriormente iniciou um estudo sistemático em 30 crianças no seu hospital e observou alterações notáveis no comportamento das crianças:

 “A mudança de comportamento mais espetacular provocada pelo uso da benzedrina foi o desempenho escolar notavelmente melhorado em aproximadamente metade das crianças”.  As crianças “estavam mais interessadas no seu trabalho e realizavam-no com mais rapidez e precisão”.

Além disso, algumas diminuições na atividade motora foram observadas nas crianças que também “ficaram emocionalmente subjugadas sem, no entanto, perderem o interesse pelo ambiente”. Tal como nós, hoje em dia, ficamos algo perplexos como é que um estimulante pode acalmar uma criança com PHDA, também Bradley referiu na altura:

“Parece paradoxal que uma droga conhecida como estimulante produza um comportamento moderado em metade das crianças. Deve ter-se em mente, entretanto, que porções dos níveis mais altos do sistema nervoso central têm como função a inibição, e que a estimulação dessas porções pode, de facto, produzir o quadro clínico de atividade reduzida através do aumento do controlo voluntário”.

Embora Bradley e os seus colegas tenham publicado estas descobertas em revistas proeminentes da época, não tiveram grande influência sobre a investigação e a prática médica durante pelo menos 25 anos.  Possivelmente devido à ampla influência da psicanálise na época e à suposição de que as perturbações comportamentais não teriam base biológica e seriam tratadas apenas com intervenções psicológicas. A ideia de que estas patologias devem ser abordadas apenas com psicoterapia ou priorizando a psicoterapia tem quase 100 anos. Não resultou.

Chegamos à Ritalina. Desenvolvida em 1944 por Leandro Panizzon, o cientista testou o fármaco em si próprio e na sua esposa, Rita (prática comum na época). Embora sem grande efeito em Panizzon, Rita tomou o estimulante para se preparar para os jogos de ténis e melhorou bastante o seu desempenho. Em homenagem a Rita, Panizzon chamou o fármaco de “Ritalina”. Foi aprovada em 1955, há mais de 60 anos, e era utilizada para várias condições que nada tinham a ver com a PHDA como depressão, letargia e narcolepsia. Só mais tarde se percebeu que era eficaz no tratamento da PHDA, sendo o medicamento base para o tratamento desta perturbação.

Como se percebe, o conceito de PHDA é muito antigo. Apesar disso, só em 1968 foi descrita na segunda edição do manual da DSM, “oficializando” esta perturbação. Ao longo do tempo, o diagnóstico tem sofrido alterações à medida que mais conhecimento vai sendo adquirido sobre este problema. No DSM-III, houve um desvio do foco da hiperatividade para o défice de atenção, tendo sido descrito o défice de atenção com e sem hiperatividade. Essa mudança foi polémica e no DSM-III-R houve novamente alterações, tendo ficado descrita a “perturbação de défice de atenção-hiperatividade” e a “perturbação de défice de atenção não especificada”. No entanto, a “perturbação de défice de atenção-hiperatividade” enquadrava vários subtipos diferentes entre si. Assim, no DSM-IV a perturbação foi dividida em três subtipos: o subtipo em que predominava o défice de atenção, outro em que predominava a hiperatividade e o terceiro tipo em que os dois estavam presentes de forma importante.  No DSM-5, a última revisão dos critérios de diagnósticos, houve algumas alterações menos dramáticas que nas revisões anteriores, mas que possivelmente irá alargar o número de crianças diagnosticadas com PHDA. Por exemplo,  na área funcional, a presença da PHDA precisa apenas de “reduzir a qualidade do funcionamento social, académico ou ocupacional”, em vez de exigir que tal alteração seja “clinicamente significativa”.

A prevalência de PHDA está a aumentar?

Na realidade, ao contrário do que tem sido transmitido na comunicação social, tal não parece estar a acontecer. Como falamos relativamente ao autismo, a razão do suposto aumento parece relacionado com as alterações dos critérios de diagnóstico e maior sensibilidade ao diagnóstico desta patologia.  É consensual que a PHDA se manifesta nas diferentes culturas, em aproximadamente 5% a 6% das crianças e 2.5% dos adultos, sendo mais comum no sexo masculino com uma proporção de 2:1 nas crianças e de 1.6:1 nos adultos (artigo e artigo). As taxas de prevalência alteram‑se significativamente em função daquilo que é perguntado e das técnicas de recolha de dados utilizadas. As variações chegam a ir dos 2% aos 18%. No entanto, quando os fatores confundidores são ajustados (por exemplo, padronizando os critérios de diagnóstico), existe uma constância da prevalência de PHDA na ordem dos 5%. (artigo e artigo). Por exemplo, como podemos ver pelos questionários do CDC, a prevalência tem-se mantido relativamente constante, sujeita a pequenas variações.

Se os investigadores não tivessem feito ajustes ao questionário NSCH realizado em 2016 (a verde) para poderem comparar com os questionários anteriores, então iríamos assistir a um aumento da prevalência de PHDA para os 9.4%. Isto é para perceberem a importância que os critérios de diagnóstico ou mesmo as perguntas que são feitas aos pais e profissionais de saúde têm na estimativa da prevalência de determinadas doenças. Isso não significa que a doença esteja a aumentar, que haja uma epidemia relacionada com fatores ambientais. Muitas vezes basta haver mudanças de critérios ou das perguntas colocadas.

Avaliando a posição do PAN

O PAN apresentou três projetos de resolução apresentados à Assembleia da República. (1, 2, 3), que vamos analisar. Referem que a PHDA “encontra-se recorrentemente associado à prescrição de medicação como o “Concerta”, a “Ritalina” e o “Rubifen”, medicamentos que têm em comum o cloridrato de metilfenidato, que é uma substância química utilizada como fármaco estimulante leve do sistema nervoso central, mecanismo de acção ainda insuficientemente explicado, principalmente no que diz respeito aos efeitos de longo prazo.

Vamos ver a evidência sobre a eficácia da medicação…

Como referido anteriormente, o metilfenidato é um medicamento aprovado há mais de 60 anos. Não é algo novo e existem décadas de investigação sobre este fármaco. Obviamente a que a investigação existente não é perfeita. Pode e deve ser melhorada. Em 2016, os problemas da investigação na área foram levantados após a publicação de uma revisão da Cochrane bastante controversa sobre as opções farmacológicas para o tratamento da PHDA. A revisão concluiu que a medicação é eficaz, mas a qualidade da evidência é baixa ou muito baixa e os estudos tem duração curta (12 meses). Foram escritos alguns artigos com críticas relevantes à revisão Cochrane, referindo as falhas metodológicas importantes que menorizou a eficácia dos medicamentos para controlo da PHDA. Citando um desses artigos:

Em resumo, a inclusão e exclusão incorretas de estudos e a avaliação injustificada do risco de viés levou a resultados que contradizem décadas de evidências de ensaios clínicos randomizados. Uma vez que estudos randomizados de longo prazo são impossíveis e indisponíveis devido a limitações éticas, análises recentes de registos fornecem as evidências mais convincentes sobre os benefícios a longo prazo do metilfenidato. Esses estudos indicam, por exemplo, que o tratamento com metilfenidato tem efeitos benéficos em termos de desfechos distais importantes que vão além do controlo dos sintomas, como redução da comorbilidade, uso e dependência de substâncias, visitas relacionadas com traumas às salas de emergência e mortalidade. Além disso, na ausência de efeitos clinicamente relevantes das opções de tratamento não farmacológico nos sintomas centrais da PHDA, uma desvalorização dogmática do tratamento atualmente mais eficaz não é útil nem para a ciência nem para os doentes.

Em 2018 foram publicadas duas meta-análises importantes sobre o tema. Uma avaliou a utlização de metilfenidato e a melhoria da performance académica,contabilizando três décadas de investigação. Demonstrou que o metilfenidato melhora a produtividade académica (principalmente a nível da matemática), e tem um impacto ainda maior no controlo dos sintomas associados ao PHDA. Os efeitos não são espetaculares, mas são reais e palpáveis.  Outra meta-análise publicada no The Lancet, refere o seguinte:

“Os nossos resultados representam a base mais abrangente de evidências disponíveis para informar doentes, familiares, médicos, criadores de diretrizes e políticos sobre a escolha de medicamentos para PHDA em todas as faixas etárias. Levando em consideração tanto a eficácia quanto a segurança, as evidências desta meta-análise dão suporte ao metilfenidato em crianças e adolescentes e anfetaminas em adultos, como medicamentos preferenciais de primeira escolha para o tratamento de curto prazo. Novas investigações devem ser financiadas com urgência para avaliar os efeitos a longo prazo dessas drogas.”

Portanto, este apontamento do PAN está correto até certo ponto. Como em muitas áreas da ciência, é necessário melhorar o conhecimento. Para já temos alguns estudos preliminares demonstrando que a utilização de metilfenidato têm um impacto a nível cerebral dependente da idade em que é iniciado – quanto mais novo, maior o impacto (artigo, artigo). No entanto, os estudos que existem são estudos DOE, que avaliam resultados sem grande interesse prático em termos clínicos. São necessários estudos de longo prazo para verificar a eficácia e consequências da medicação. Essa falha é reconhecida. O estudo ADDUCE será o primeiro estudo clínico a ser realizado para colmatar essa falha.

Mas estamos a medicar excessivamente as crianças?

O PAN refere que “…em Portugal, 23.000 crianças estão medicadas para a perturbação da hiperactividade com défice de atenção.” (…) “”…de acordo com estudos realizados pelo Infarmed, a utilização do metilfenidato apresenta uma tendência de crescimento. O metilfenidato passou a ser comparticipado em 2003 e a atomoxetina em 2014.” (..) “De acordo com o mesmo estudo, as crianças portuguesas até aos 14 anos estão a consumir mais de 5 milhões de doses por ano de metilfenidato, sendo que o grupo etário dos 10 aos 14 anos foi o responsável pelo maior consumo desta substância, cerca de 3.873.751 doses. Ao grupo etário entre os 0 e os 4 anos de idade foram administradas 2900 doses de metilfenidato, tendo sido no grupo etário dos 5 aos 9 anos administradas 1.261.933 doses.

Primeiro, não é possível avaliar, recorrendo a estes números, se existe ou não sobreprescrição ou sobrediagnóstico da doença. É como dizer que o aumento da utilização de terapia ocupacional por parte de crianças autistas demonstra a existência de um sobrediagnóstico do problema. Ou um aumento da utilização de consultas de psicologia pelas crianças com PHDA. Ou aumento de prescrições de óculos nas crianças míopes. Podem existir mais diagnósticos por existir mais consciencialização e sensibilidade para detetar e tratar determinada doença. Pode existir aumento de medicação porque as crianças não melhoraram com acompanhamento psicológico de forma isolada.

Agora, tendo em consideração que a PHDA é um espectro e algumas crianças se encontram numa zona cinzenta, é possível que a pressão de pais e professores e mesmo os médicos “empurrem” essas crianças para o diagnóstico de PHDA. Mas dificilmente será algo representativo. No entanto, vamos analisar os números:

Se virmos na imagem superior e como o próprio PAN refere, a prescrição de metilfenidato nas crianças entre os 0 e 4 anos representa 0.04% das crianças medicadas, valores de 2014. Ou seja, representam um número altamente residual, o que dá alguma confiança no trabalho desenvolvido pelos médicos relativamente à contenção na prescrição de metilfenidato nesta faixa etária. Depois, olhando para imagem abaixo, da autoria do Público, o que verificamos neste últimos 3 anos é uma estabilização do número de prescrições dos medicamentos para tratamento da PHDA.  Alguém que explique o drama levantado relativamente à prescrição do metilfenidato em crianças com menos de 6 anos. E onde está o aumento galopante de prescrições deste tipo de medicação nas restantes faixas etárias.

Paradoxalmente ao que foi argumentado pelo PAN, na Europa parece existir uma subprescrição destes medicamentos. Esta subprescrição aparenta ser uma resposta ao excesso de prescrição nos Estados Unidos, estando associado a um medo exagerado dos efeitos adversos da medicação e a um exagero da eficácia das intervenções não farmacológicas. Então, de acordo com estes dados, o PAN deveria estar preocupado com o acesso das crianças à medicação do que propriamente com um excesso de medicalização das crianças.

Medicar em crianças com menos de 6 anos…sim ou não?

O PAN refere que “Segundo o Infarmed, nomeadamente conforme resulta das bulas do “Rubifen”, “Ritalina” e “Concerta”, o metilfenidato é indicado como parte de um programa de tratamento abrangente para a PHDA em crianças com idade igual ou inferior a 6 anos quando as medidas tomadas para a resolução deste problema se revelarem insuficientes. Consta inclusive que o metilfenidato não deve ser utilizado em crianças com menos de 6 anos de idade, pois a segurança e a eficácia não foram estabelecidas neste grupo etário. Todavia apesar das recomendações, esta substância está a ser prescrita e administrada a crianças com idade igual ou inferior a 6 anos pelo que consideramos essencial que se promovam campanhas de informação e sensibilização dirigidas aos profissionais de Saúde por forma a não administrar o metilfenidato ou atomoxetina a este grupo etário.

Refere ainda que “Os folhetos referem ainda expressamente que estes medicamentos não se destinam a ser utilizados como tratamento para a PHDA em crianças com menos de 6 anos de idade, uma vez que a sua segurança e eficácia não foram estabelecidas neste grupo etário.

E mais importante, diz que ““Várias directrizes europeias foram recentemente publicadas sobre o tratamento de Perturbação de Hiperatividade com Défice de Atenção aplicadas à prática clínica Europeia, compiladas em 2017 pelo Instituto para PHDA: Orientações Clínicas Europeias da Sociedade Europeia para a Psiquiatria da Criança e do Adolescente (ESCAP) para HKD, As diretrizes do Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Assistência (NICE) e As diretrizes da Associação Britânica de Psicofarmacologia”.  Sobre o tratamento de Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA) em crianças com menos de 6 anos, estas entidades adoptam posições consensuais sobre a prioridade que deve ser dada a intervenções psicológicas e ao treino dos pais para lidar com a situação de forma continuada, a menos que deficiências significativas persistentes justifiquem a revisão do especialista.”

Já falamos acima da razão da prescrição off-label.  E evidentemente que a utilização do metilfenidato em qualquer idade deve ser bem ponderada, em particular em crianças em idade pré-escolar por ser menor a experiência. Contudo, existem diversos estudos que parecem provar a eficácia e segurança nessas crianças. Não nos podemos esquecer que a PHDA tem sérias consequências que são transversais à vida da criança e não só do ponto de vista escolar. O número acrescido de acidentes, por exemplo, é um desses aspetos. Como podem ver na figura abaixo, o risco está aumentado em todos os tipos de ferimentos avaliados:

Um dos estudos mais conhecidos a avaliar a prescrição de metilfenidato em idade pré-escolar tem o acrónimo PATS (preschool ADHD Treatment Study – 1,2,3) mas atualmente há mais de uma dezena de estudos sobre o assunto. O PATS estudou 303 crianças entre os 3 e os 3 anos e meio. O estudo tinha um desenho complexo mas deu informação importante ao demonstrar a eficácia do metilfenidato. A eficácia foi menor nas crianças com idade pré-escolar mas limitações de dosagem poderão estar implicadas. Como em todas as farmacoterapias uma avaliação cuidadosa do risco-benefício é necessária. A decisão de tratar e como fazê-lo resulta de um diálogo informado e aberto entre o médico, o doente e a sua família. A utilização do metilfenidato em crianças em idade pré-escolar é excepcional, como vimos acima, mas a sua proibição iria privar um conjunto de crianças de uma arma terapêutica que poderá ser essencial ao seu bem estar.

Nenhuma das guidelines referidas acima pelo PAN dá indicações para a proibição ou limitação do ato médico no que diz respeito à prescrição desses fármacos, ao contrário do que é o seu objetivo. A compilação realizada em 2017 para a PHDA por parte do instituto para a PHDA não faz uma transcrição correta das guidelines, pelo que devem ser consultadas as fontes originais. Por exemplo, relativamente às guidelines da NICE, refere que a medicação não é recomendada em crianças em idade pré-escolar, quando as guidelines referem que a medicação não deve ser oferecida “a qualquer criança menor de 5 anos sem uma segunda opinião especializada de um serviço de PHDA com experiência na gestão de PHDA em crianças pequenas.” O que é bastante diferente.

Quanto às diretrizes da Associação Britânica de Psicofarmacologia, publicadas em 2014, os critérios são ainda mais alargados. A medicação é prioridade perante doença grave, não dependente da idade. Uma nuance fundamental que passou ao lado do PAN:

“Todas as crianças com PHDA grave devem receber tratamento farmacológico. Além disso, considere o tratamento farmacológico para crianças com sintomas moderados de PHDA que não responderam a intervenções psicológicas.

A primeira linha de atuação deverá ser exclusivamente psicológica?

O PAN diz o seguinte: “É igualmente importante a promoção de campanhas de informação e sensibilização dirigidas à população em geral sobre a PHDA, contribuindo para o esclarecimento aprofundado e alargado desta patologia, dos seus sintomas e modos de intervenção, e de campanhas de informação e sensibilização dirigidas à população em geral e, em especial aos profissionais de saúde, sobre o diagnóstico, prescrição e administração de metilfenidato ou atomoxetina, alertando-os para a importância da intervenção psicológica como tratamento de primeira instância.”

Os estudos habitualmente demonstram que a associação de psicoterapia com medicação atinge melhores resultados que as terapias isoladas. Até é possível que a associação de ambas as terapêuticas leve à utilização de menores doses da medicação e à necessidade de um menor número de consultas de psicoterapia. 

A maior pesquisa científica em relação a linhas de atuação distintas é o Multimodal Treatment (MTA). A investigação avaliou as seguintes estratégias em crianças com 7 a 10 anos, no espaço de 14 meses:

  • Só medicação (incluindo procurar o fármaco e a dosagem ideais para cada criança, contendo consultas mensais de farmacoterapia).
  • Só um intenso programa comportamental e psicoterapêutico, o qual incluía intervenções em casa e na escola.
  • Uma combinação das duas primeiras estratégias (farmacoterapia mensal e programa comportamental e psicoterapêutico incluindo escola e casa).
  • O tratamento comum nos serviços de saúde primários (medicação com visitas esporádicas).

Resultado: A associação de ambas as intervenções foi a que obteve melhor resultado, com sucesso de 68%. Seguiu-se a farmacoterapia intensiva (56%), tendo a intervenção comportamental um registo de sucesso de 34% e os serviços da comunidade com 25% de sucesso. Verificou-se também que 25% das crianças que faziam apenas o programa comportamental tiveram que ser medicadas antes do término dos 14 meses do estudo.

Ou seja, neste estudo a medicação foi superior à psicoterapia e muitas crianças não medicadas tiveram que o ser posteriormente. Uma meta-análise publicada em 2017 parece confirmar isso. Mesmo em crianças pré-escolares, verifica-se que a medicação poderá ser superior à intervenção psicológica isolada, no entanto os estudos existentes nesta área são muito limitados para tirar qualquer tipo de conclusão nesse sentido. Isto não serve para menorizar a importância da psicoterapia mas para salientar que, mais uma vez, a orientação das crianças deve ser feita caso a caso, de acordo com a avaliação do terapeuta e não por decreto.  O que não parece haver grandes dúvidas é que a combinação de medicação mais intervenção psicológica e educacional consegue obter os melhores resultados nas crianças com PHDA. A própria American Psychological Association valida a utilização da medicação e, algo importante para os decisores políticos, é um medicamento custo-efetivo.

Recorrer a falácias da autoridade

Em vez de falar com os profissionais de saúde sobre o tema, o PAN recorre a falácias de autoridade, citando o que alguns profissionais de saúde disseram em jornais e revistas. Para além disto não ter qualquer valor científico, o PAN fê-lo de uma forma desonesta, dizendo que “Perante o aumento da utilização de metilfenidato, vários médicos e psicólogos têm reconhecido publicamente diagnósticos errados e prescrições indevidas. A título de exemplo, o neuropediatra Nuno Lobo Antunes admite receber muitas crianças “medicadas de forma errada para o problema errado”.

O neuropediatra Nuno Lobo Antunes, que assina este artigo e deu uma entrevista no canal Dissenter sobre este tema, não valida a posição do PAN. Citar pessoas sem lhes perguntar qual a sua posição relativamente ao tema sobre o qual vão ser citadas não parece correto.

Conclusão

A complexidade do tema exige que sejam os especialistas a pronunciarem-se sobre o assunto. Decerto não cabe aos médicos representarem politicamente a população, mas também não cabe aos deputados vestirem a bata e opinarem sobre assuntos técnicos fora da sua competência. Se os partidos pretenderem melhorar o acesso às crianças à pediatria de desenvolvimento, neuropediatria e pedopsiquiatria, são bem-vindos. Se pretenderem melhorar o acesso a consultas de psicoterapia especializadas em PHDA, dificilmente alguém se oporá a essa solução. Se quiserem melhorar o acesso à terapia ocupacional, todos os profissionais de saúde e famílias que querem ajudar estas crianças ficarão satisfeitos.

No entanto, tentar impor por via legislativa restrições ao ato médico, indo contra a ciência existente e as posições da larga maioria dos profissionais que tratam esta perturbação, não parece fazer sentido.

 

 

 

Crianças migrantes medicadas sem consentimento em centros de acolhimento

Junho 23, 2018 às 5:23 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , , , ,

Notícia do Público de 21 de junho de 2018.

“Disseram-me que não podia sair se não tomasse a medicação”, contou uma das crianças.

Inês Chaíça

A “tolerância zero” para com a imigração ilegal, que tem ditado a separação de famílias que entram nos EUA, fez com que centenas de crianças fossem mantidas em jaulas enquanto aguardam pelo desfecho das acções judiciais contra a família, e geraram uma onda de críticas. Mas há outras denúncias de outros atropelos aos direitos dos menores, cometidos anteriormente – vários centros de acolhimento estatais estão sob investigação porque os funcionários medicam crianças com psicotrópicos sem o consentimento dos pais. Alguns disseram tomar 16 comprimidos por dia, segundo o Huffington Post e o Texas Tribune.

Os centros são contratadas pelo Departamento de Realojamento do Refugiado [Office of Refugee Resettlement,  ORR na sigla inglesa] dos EUA, agência estatal que distribui subsídios a instituições em mais de 18 estados, maioritariamente religiosas e sem fins lucrativos.

Desde 2003, o Departamento de Saúde e Serviço Humano já atribuiu cinco mil milhões de dólares a estas instituições de acolhimento temporário e tratamento. Mas os relatos de abusos vindos destas instituições motivaram uma acção judicial contra elas. Nesse processo, ainda em curso, foram ouvidas vários menores – um deles recorda ter tomado nove comprimidos de manhã e outros sete à noite, sem saber que medicação se tratava.

“O ORR administra de forma rotineira às crianças medicamentos psicotrópicos sem a autorização necessária”, lê-se num memorando do processo, datado de Abril de 2016 e citado pelo Huffington Post. “Quando os jovens se recusam a tomar esta medicação, a ORR obriga-os. A ORR não pede consentimento parental antes de medicar uma criança, nem solicita autorização legal para consentimento no lugar dos pais. Em vez disso, a equipa do ORR ou do centro de acolhimento assina formulários de ‘consentimento’, atribuindo-se autoridade para administrar medicamentos psicotrópicos a crianças” ao seu cuidado.

Uma grande parte das acusações de medicação forçada vem do centro de acolhimento e tratamento Shiloh, em Manvel, no Texas. Fundado em 1995, começou a ser financiado em 2013 pelo Estado, que lhe atribuiu 25 milhões em subsídios ao longo de cinco anost. De acordo com os advogados que representam as crianças neste processo, a medicação forçada acontece em todos os centros, mas só em Shiloh é que se administram injecções forçadas.

As crianças acabam em Shiloh devido a problemas comportamentais ou de saúde mental, diagnosticados a alguns dos jovens que cruzam a fronteira. O transtorno stress pós-traumático é um dos mais comuns. Os psicotrópicos podem ser repostas válidas para o tratamento destes transtornos, mas só se forem receitados por psiquiatras e administrados com consentimento parental. Caso contrário, violam-se as leis do Texas.

Um dos menores que viveram nesse centro, identificado no processo como Julio Z., contou em tribunal como os funcionários o atiravam ao chão para o forçar a aceitar os comprimidos: “Disseram-me que não podia sair se não tomasse a medicação”, relatou, segundo os registos do tribunal. Ainda disse ainda ter engordado 20 quilos devido aos comprimidos, escreve o Huffington Post.

400 delitos em centros de acolhimento

As crianças migrantes que chegam aos EUA sozinhas recebem, das autoridades, o rótulo de “menores não acompanhados”. Diz a lei que devem ser encaminhadas para junto dos familiares que vivam no país, mas a maior parte passa meses em centros de acolhimento como Shiloh. Em 2014, cerca de 70 mil crianças cruzaram a fronteira sozinhas.

A estas, juntam-se agora os menores separados das suas famílias com a ‘tolerância zero’ decretada pela Administração Trump. Actualmente, as crianças estão a ser colocadas em centros de acolhimento temporário, onde dormem em armazéns onde os vários recintos são separados por gradeamento – semelhantes a jaulas, denunciaram os críticos. Outros vivem em tendas vigiadas por pessoal do Departamento de Segurança Interna armado com espingardas. Mas é apenas uma situação temporária: estes menores vão ser depois enviados para centros de acolhimento através do ORR.

Há outros problemas: de acordo com as autoridades, nos lares de acolhimento temporário do estado do Texas foram registadas mais de 400 delitos, um terço destes considerados “sérios”, escreve o Texas Tribune.

Na sua maioria, relacionam-se com falhas nos cuidados médicos. De acordo com a investigação deste jornal regional, há relatos de crianças com queimaduras, pulsos partidos e doenças sexualmente transmissíveis que ficaram sem tratamento. Há ainda relatos de uma criança que tomou um medicamento ao qual era alérgica, apesar do que indicava a sua pulseira médica. E as autoridades também descobriram centros onde há “contacto inapropriado com crianças”. Num deles, um funcionário deu uma revista pornográfica a um menor.

Em 2001, uma menor morreu num desses lares temporários ao ser imobilizada por um funcionário – foi a terceira a morrer desta forma desde 1993. Há ainda registo de uma criança que morreu por asfixia e outra presa dentro de um armário.

 

 

Hiperatividade infantil. Estamos a medicar demasiado os miúdos?

Abril 23, 2018 às 12:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , , ,

Texto do site https://magg.pt/ de 5 de abril de 2018.

por MARTA GONÇALVES MIRANDA

Os pais acusam as escolas de fazerem pressão, os professores alertam para os perigos de ignorar o problema da hiperatividade.

Quando Jasper estava no terceiro ano do primeiro ciclo do ensino básico, foi-lhe diagnosticado défice de atenção. A meio do ano, a professora sugeriu que a criança começasse a tomar medicamentos. “Eu disse: ‘Ele não toma medicamentos’”, conta Regina, mãe de Jasper, no novo documentário da Netflix, “Take Your Pills: Receita para a Perfeição”. A professora respondeu-lhe: “Nesta escola toda a gente toma medicação”.

Em 2015, o Infarmed lançou o primeiro (e para já único) estudo sobre o consumo de fármacos para a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). Os números eram alarmantes: cerca de cinco milhões de doses estavam a ser prescritas por ano a miúdos até aos 14 anos. Por outros números, em 2014 tinham sido dispensadas 276 mil embalagens de metilfenidato em Portugal continental.

Metilfenidato. Falamos da substância ativa mais comum em Portugal para tratar a Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). Nas farmácias portuguesas é vendida com os seguintes nomes: Concerta, Ritalina e Rubifen.

Na altura, a Direção Geral de Saúde descreveu os números como “alarmantes”. Felizmente, nos anos seguintes os números melhoraram: segundo o Infarmed divulgou ao jornal “Público” no início deste ano, verificou-se uma diminuição no consumo de medicamentos para tratar a hiperatividade e défice de atenção. Entre janeiro e novembro de 2016 foram vendidas 259 mil embalagens. Em 2017, foram 254 mil.

Os números estão mais baixos, no entanto o debate continua aceso. Para alguns, como a professora do 3º ciclo do ensino básico, Carla Magalhães, há crianças que deveriam estar a ser medicadas e não estão porque os pais não se querem render à chamada “doença da moda”. Precisam de facto de ajuda porque, sem ela, não conseguem aprender ou sequer integrar-se. No extremo oposto, outros defendem que há miúdos mal-medicados ou a serem incentivados a tomar medicamentos prematuramente, com pais a acusarem as escolas de fazerem pressão.

“Eu sei que não era um miúdo fácil, mas não foi a medicação que o ajudou”

Vânia Barreiras é educadora de infância. Aos 37 anos, conviveu de perto com o problema da hiperatividade e défice de atenção. Ou pelo menos acha que sim: um dos seus filhos, hoje com 18 anos, foi diagnosticado com a doença quando passou para o quinto ano numa escola privada em Viana do Castelo. Um médico aconselhou a criança a tomar medicação. Começaram por uma dose baixa de Concerta.

“Eu recebia queixas do género: ‘Ele brinca com tudo, até com a borracha’. Era a forma que ele tinha de se manter atento, precisava de se mexer. Eu notava isso em casa, quando estávamos a estudar o dois estava sempre a abanar as pernas, por exemplo.”

Porém, Vânia Barreiras acabou por aceitar o que os médicos lhe diziam, que a medicação era a única alternativa. No primeiro ano, as coisas pareciam estar a correr bem. Os professores pararam de a chamar à escola, o filho parecia estar mais concentrado, até tinha a letra mais legível. Só que logo a seguir vieram os efeitos secundários, como as dores de cabeça e a falta de apetite.

“Quando vinha o corta-mato da escola, dizia que não queria tomar o medicamento porque se não depois não conseguia correr”

“Estava apático, parecia uma crianças doente. Quando vinha o corta-mato da escola, dizia que não queria tomar o medicamento porque se não depois não conseguia correr.”

Até que começou a mentir — farto de se sentir alterado com a medicação, a criança começou a deixar de tomar os medicamentos às escondidas dos pais. Vânia Barreiras apercebeu-se disso e, percebendo a aflição do filho, decidiu cortar com a medicação no 7.º ano.

“No 8.º ano mudou de escola e eles diziam o inverso: nada de medicação. Hoje está a terminar o 12.º ano e não toma nada. Eu sei que não era um miúdo fácil, mas não foi a medicação que o ajudou. Não foi a pressão da escola que o ajudou. Há casos e casos, as coisas têm de ser avaliadas individualmente.”

Aos 18 anos, o filho de Vânia é uma criança perfeitamente normal. Mas nunca mais conseguiu encontrar o equilíbrio com a escola — detesta ler, escrever, tudo o que seja teórico é um martírio. “Mas se forem actividades práticas não há problema nenhum. Ele pratica equitação, por exemplo, e tem um talento natural para acalmar os cavalos. Conseguiu ir ao pódio de um campeonato regional sem qualquer dificuldade.”

Há pressão das escolas para medicar os miúdos?

Joana Esteves, 31 anos, está neste momento a trabalhar na área social, mais precisamente no rendimento social de inserção. Há pouco tempo lidou com um caso de uma criança diagnosticada com PHDA que, inesperadamente, começou a sentir palpitações. Os médicos suspeitaram que podia ser um problema cardíaco, por isso pediram aos pais que parassem com a medicação até serem feitos todos os exames.

“A escola recusou que ele tivesse aulas até voltar a estar medicado”, conta Joana Esteves à MAGG. “A criança esteve em casa até saírem os resultados dos exames e perceberem que o problema não era da medicação.”

“Está na moda medicar os miúdos. Fala-se muito nisto: é uma criança agitada, logo se calhar é uma criança hiperativa. Não, se calhar é só uma criança normal que salta, pula”

Joana Esteves trabalhou praticamente toda a vida com crianças, nomeadamente em contexto de ATL. Tal como os números do Infarmed atestam, também ela sentiu uma diminuição no consumo de psicofármacos no ano letivo e 2016/2017. Nos anos anteriores, não tem dúvidas: havia muitas crianças medicadas. Se tivesse de apontar um número, diria entre 15 a 20%.

“Há pressão das escolas para ter as crianças medicadas”, afirma. “Está na moda medicar os miúdos. Fala-se muito nisto: é uma criança agitada, logo se calhar é uma criança hiperativa. Não, se calhar é só uma criança normal que salta, pula.”

Um empresária de 45 anos que pediu anonimato sentiu isso na pele. No ano letivo de 2014/2015, o filho entrou para o primeiro ano num colégio privado em Lisboa. “Senti logo pressão por parte da escola para que ele fosse ao psicólogo do colégio.” Os pais assim fizeram, e o menino foi diagnosticado como tendo défice de atenção. Encaminhado para outro gabinete de psicologia infantil, a avaliação foi completamente diferente — o miúdo estava ótimo, garantiram.

“A única coisa que lhe prescreveu foi um café de manhã para aumentar a concentração. Mas a pressão na escola continuou.”

Nunca ninguém disse abertamente “o menino precisa de tomar medicação”, mas indiretamente parecia ser essa a resposta. Os pais estavam constantemente a receber chamadas de atenção, na escola o rapaz sentia-se inferiorizado. “Ele começou a ser acompanhado por uma psicóloga e a professora dizia que ele estava muitas vezes distraído. ‘Parece que não dormiu, estava deitado em cima da secretária’. Ela nunca percebeu que ele fazia isto, não porque não tivesse dormido à noite, mas porque estava desmotivado — isto foi-me dito pela psicóloga.”

“Eles querem miúdos robot, que não olhem para o lado. Uns são mais quietos, outros são mais distraídos. Os mais distraídos são logo rotulados com défice de atenção. No mínimo!”

O filho da empresária esteve no colégio durante o primeiro e segundo anos do primeiro ciclo do ensino básico. A auto-estima da criança estava cada vez pior. Começou a ficar obcecado com as notas, e a fazer comentários em casa como “eu não sou bom, só tive 57%”. Quando a mãe encontrou uns desenhos do filho com as frases “eu não devia ter nascido” e “sou um falhado”, linguagem que ele nunca tinha ouvido em casa, tomaram a decisão de o tirar do colégio. Fizeram-no em janeiro deste ano.

“Hoje em dia as escolas privadas estão muito vocacionadas para rankings. Querem ser as melhores, porque isso vende mais. Eles querem miúdos robot, que não olhem para o lado. Uns são mais quietos, outros são mais distraídos. Os mais distraídos são logo rotulados com défice de atenção. No mínimo! Isto é um massacre para os miúdos.”

Na nova escola, o comportamento do rapaz mudou completamente. “Hoje o meu filho está muito mais feliz. Não teve qualquer problema de adaptação e não tem de tomar nada.”

Marta Calado, psicóloga na Clínica da Mente, no Porto, assegura que a maioria dos casos que chegam à clínica vêm por sugestão das escolas. “Quando os pais chegam aqui com crianças que foram diagnosticadas com PHDA, normalmente isto acontece devido a uma queixa escolar.” Muitas vezes, a clínica recebe estes pais porque eles não conseguem reconhecer os seus filhos após a toma da medicação — eles ficaram completamente diferentes, regra geral pior.

“O pedido de apoio muitas vezes passa por aqui: eu não quero ter o problema que tinha anteriormente mas também não quero este novo problema com que me deparo agora.”

Na opinião de Marta Calado, é muito fácil perceber se uma criança tem ou não hiperatividade. “Conseguimos identificar rapidamente quando há uma limitação que é de âmbito físico ou emocional.” E à pergunta se recebem mais casos de crianças bem ou mal-diagnosticadas, a resposta é imediata: “Mal. Sem dúvida. Temos poucos casos dos ditos ‘verdadeiros’ hiperativos. Cada vez mais são os casos de crianças mal-diagnosticadas.”

“Os professores não querem ter os miúdos medicados”

Carla Magalhães é professora de fisico-química há 23 anos. Neste momento numa escola em Lisboa a dar aulas ao 3.º ciclo, deixa o alerta: no que diz respeito à medicação, estamos a entrar num debate onde de um lado estão as pessoas a favor e no outro as pessoas contra. E isso sim é o mais preocupante: não podemos ser contra ou a favor. Tudo depende dos miúdos.

“Obviamente que não podemos pensar em ter a maioria dos nossos jovens dopados. E preocupa-nos que haja um consumo excessivo. Mas há casos em que é absolutamente imprescindível. Miúdos hiperativos não são miúdos agitados, não são miúdos com mau feitio ou que não sabem estar. Eles sofrem hiperatividade, e a hiperatividade é uma patologia.”

A professora de 46 anos realça que maus profissionais existem em todas as profissões. Não pode falar por uma classe inteira e garantir que não há professores que incentivam os pais a procurarem soluções medicamentosas, no entanto, afirma que esta não é de todo a regra.

“Os professores não querem ter os miúdos medicados. É de facto difícil gerir turmas com 30 ou mais alunos, e também se sabe que a nossa profissão carece de facto de apoio. Antes bastava passar a informação de que o menino estava mal-comportado e o assunto era resolvido, agora se calhar pensa-se primeiro que a responsabilidade não é da criança. Mas não é por isso que vamos agora desatar a caçar miúdos com hiperatividade. Eu pelo menos espero que não seja isso que se esteja a passar.”

Só que o contrário também não pode acontecer: não podemos ter miúdos que precisam de ajuda e não a recebem. “Há alturas em que é aflitivo o sofrimento destas crianças. Se eu pedir a um miúdo agitado para sossegar e dizer-lhe que no final ele pode fazer aquilo que quer — a tal questão da recompensa —, ele consegue. Com um miúdo hiperativo isto não funciona porque ele simplesmente não consegue. E ele ficafrustrado, porque quer fazê-lo mas não consegue.”

Carla Magalhães explica que os miúdos hiperativos são, regra geral, extremamente inteligentes. Logo têm consciência que não conseguem fazer aquilo que lhes é pedido, o que os deixa em luta consigo mesmos. Além disso, são muitas vezes usados pelos colegas para causar distúrbio nas aulas — eles sabem que eles não vão conseguir controlar-se —, no entanto, no recreio, são estereotipados e postos de parte. Isto porque até para os colegas eles são demasiado agitados.

“Que também há o contrário, há. Há miúdos que quase roçam o abandonado pelos pais quando estes não tentam pelo menos perceber o que se passa com eles.”

“Já tivemos alguns casos em que tivemos de falar com os pais para encaminharem esses miúdos. Porque de facto estavam em sofrimento. O máximo que um professor pode fazer é pedir à mãe ou ao pai para verem, fazerem um rastreio, e depois agirem em conformidade. Que seja generalizado que os professores querem que os miúdos tomem medicamentos, não. Agora, que também há o contrário, há. Há miúdos que quase roçam o abandonado pelos pais quando estes não tentam pelo menos perceber o que se passa com eles.”

“Eu não queria que ele tomasse medicação. Pensei que podia ser só uma fase, todas as crianças são agitadas”

O filho mais velho de Tatiana Gaspar, 32 anos, foi diagnosticado com hiperatividade e défice de atenção há dois anos. No início, a recepcionista em Lisboa foi completamente contra a utilização de medicamentos. “Eu não queria que ele tomasse medicação. Pensei que podia ser só uma fase, todas as crianças são agitadas.”

Só que a situação tornou-se cada vez mais grave. No jardim de infância, Tatiana Gaspar era constantemente chamada à escola pela educadora — o filho não parava quieto, batia nos outros meninos, subia aos móveis, não respeitava nenhuma regra. A educadora chegou a dizer à mãe que, nos dias em que ele estivesse mais agitado, tinha de o ir buscar à escola.

“Já não sabia o que fazer. Acabei por falar com a médica e começámos a dar medicação, primeiro para o défice de atenção e mais tarde para a hiperatividade.”

Tatiana Gaspar notou imediatamente mudanças no comportamento do filho. Não é que de repente se tivesse tornado numa criança calma. Nada disso: continuou agitado, fazia as suas birras, mas pela primeira vez conseguia concentrar-se nas tarefas. Já consegue pintar e fazer desenhos, por exemplo, coisas que não fazia antes.

No início de fevereiro, uma troca na medicação pelo genérico causou o terror lá em casa. “Durante um mês, foi como se tivéssemos começado tudo outra vez. Voltou àquilo que era. Nós perguntávamos-lhe: ‘Porque é que estás assim, porque é que estás a fazer isso?’, e ele respondia: ‘Porque a minha cabeça não para’. ‘Filho, para um bocadinho.’ ‘Mãe, a minha cabeça está maluca’.”

Nenhum pai gosta de tomar a decisão de medicar um filho. No caso de Tatiana Gaspar, foi uma decisão extremamente difícil. No entanto, as melhorias são evidentes: sim, continua agitado e irrequieto mas, nas palavras da mãe, os miúdos também não nasceram para ficar quietos. É normal. O que interessa é que agora já consegue prestar atenção às tarefas que tem de realizar, seja na escola, seja na terapia da fala.

“Tem dado muito resultado. Ficou muito mais interessado nas coisas, mais participativo. Também melhorou bastante na fala e na concentração.”

“Eu até digo na brincadeira que ele agora está mais chato, porque quer saber o porquê de tudo. Isso não acontecia antes.”

Uma dos temas tabu que envolvem a questão da medicação é o facto de os miúdos ficarem apáticos, quase sem vida. Isso nunca aconteceu com o filho de Tatiana: “Na terapia, às vezes fica muito quieto, porque é só ele e a terapeuta e não tem outros estímulos. Mas é porque está concentrado, não apático. Eu até digo na brincadeira que ele agora está mais chato, porque quer saber o porquê de tudo. Isso não acontecia antes.”

“Passo mais tempo a tirar medicação do que a pôr”

O grande problema actualmente é olhar para uma criança que se mexe muito e assumir de imediato que ela é hiperativa ou tem um défice de atenção. “Passo mais tempo a tirar medicação do que a pôr”, revela à MAGG Pedro Cabral, diretor clínico do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Infantil, CADIn. “Toda a gente está a utilizar critérios de medicação em função do grau de movimento.” E isso não podia ser mais errado: “Às vezes precisamos de nos mexer para fixar melhor as coisas. O exemplo mais básico é contar pelos dedos: se eu contar pelos dedos, consigo contar até mais tarde e melhor.Estou a recrutar mais circuitos para a mesma tarefa e em sítios diferentes do cérebro.”

“O que há mais são miúdos quietinhos a olhar para os professores e a segui-los com os olhos e os professores a pensarem que eles estão muito atentos quando na realidade estão a pensar que ela tem o nariz quase a cair”

Na opinião de Pedro Cabral, há cada vez mais diagnósticos feitos em consulta, nos infantários e nas escolas em que se assume que a criança não está a prestar atenção porque se mexe. Isso não é verdade. Para aprender nós precisamos de estar atentos. Não interessa se nos estamos a mexer muito. “Mas como é que ele pode estar atento se se está a mexer?”. “A pergunta é: ‘Se não para atento, como é que consegue estar quieto?

“O que há mais são miúdos quietinhos a olhar para os professores e a segui-los com os olhos e os professores a pensarem que eles estão muito atentos quando na realidade estão a pensar que ela tem o nariz quase a cair. O facto de a criança estar quieta ou parada não quer dizer que esteja a seguir o raciocínio do professor.”

A forma como as crianças estão a ser educadas também é relevante no que diz respeito aos diagnósticos errados de PHDA. Pedro Cabral sublinha que vivemos tempos em que, quando interrompem os pais, as crianças recebem logo atenção; quando pedem qualquer coisa, recebem-na de imediato. Além disso, há cada vez mais pessoas a interferir na educação dos miúdos — pais, avós, tios, profissionais, todos a opinar sobre as crianças. Às vezes, essas vozes só causam ruído.

Os medicamentos deixam as crianças apáticas?

Marta Calado, da Clínica da Mente, relata que muitas crianças que recebe chegam de facto num estado de apatia. “A criança fica nitidamente diferente daquilo que era antes. Obviamente que isto depende de caso para caso. Se temos uma criança que é ativa e faladora, vamos ter uma criança quase muda; se temos uma criança ativa mas que não é muito faladora, assistimos a uma alteração de comportamento a outro nível.”

“Se os medicamentos deixam as crianças apáticas, então é porque estão a ser dados em excesso. E isso é muitas vezes o efeito procurado pelos pais, professores ou cuidadores porque querem ter as crianças sossegadas e, pensam eles, talvez atentos”, explica Pedro Cabral. “O café e a Ritalina têm exatamente o mesmo efeito ao nível do sistema nervoso. Não é suposto ficar ‘pedrado’.”

E quais são os maiores perigos da medicação? Para Pedro Cabral são dois: os miúdos convencerem-se que só conseguem estudar medicados; e os pais, médicos e professores ficarem contentes esquecendo-se de pensar no que é que não está certo em casa ou no ambiente que rodeia a criança.

“Temos miúdos que às vezes se deitam à uma da manhã ainda com o telemóvel a tocar com o Instagram, WhatsApp e Messenger, a dormir pouco, habituados a ser constantemente bombardeados com estímulos que mudam muito rapidamente e trazem novidades constantes, e depois ficam incapazes de ouvir uma aula de História ou de Filosofia”, lamenta o especialista.

Antes de qualquer medida como medicamentos ou café, é muito mais importante para a criança libertar-se dos ecrãs a partir de determinadas horas, dormir bem, praticar desporto. É que, alerta Pedro Cabral, “a medicação é uma coisa muito séria para ser entregue desta forma a pessoas que não sabem o que é que estão a fazer.”

 

 

Pedro Cabral: “As crianças tomam demasiados calmantes”

Novembro 12, 2017 às 1:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , , , ,

 

Foto: Pedro Zenkl

Entrevista da http://www.sabado.pt/ a Pedro Cabral no dia 24 de outubro de 2017.

por Sara Capelo

O neurologista pediátrico, de 63 anos, atende crianças medicadas por outros clínicos com calmantes que ele retira. São medicamentos necessários para que estejam mais atentas, diz, mas não corrigem os problemas em casa.

As notas de João, chamemos-lhe assim, começaram a piorar. Há uns meses, a mãe falou com a pediatra. Decidiram voltar a um calmante (só aos dias de semana), que tomara no 5º ano, e tirá-lo de uma das actividades físicas regulares. Num mês, perdeu três quilos e a dose foi reduzida, somando-lhe um outro medicamento. João tem 11 anos – e em Portugal há muitos mais como ele. O relatório da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre Saúde Mental refere que, em 2014, crianças até aos 14 anos tomaram mais de cinco milhões de doses de calmantes (o metilfenidato). João continua a ter negativas e os recados para casa têm aumentado. Talvez o seu problema não seja o comportamento, como sugere o neuropediatra Pedro Cabral.

É entre os 10 e os 14 anos que mais crianças tomam esta medicação. Só nesta fase se percebeu o problema que no início os pais relevaram (“é muito mexida”)?
Tem que ver com mecanismos biológicos. A maturação dos circuitos cerebrais que nos preparam para prevenir as consequências é mais tardia do que a maturação dos circuitos destinados a saciar um desejo, um impulso. O drama da adolescência é esse. É quando os miúdos não conseguem estar atentos a uma coisa menos interessante. Estou farto de ver educadoras e mães nas consultas a dizer que a criança com 2 anos é hiperactiva. Não tem sentido. E é tramado porque está-se a medicalizar em função de queixas comportamentais em vez de se perceber que por trás de uma criança irrequieta pode estar um mundo de coisas: preocupações sobre dinâmicas familiares, falecimento de alguém querido ou uma irmã ou irmão que vai nascer. Se o médico, solicitado por pais ou educadores, medica, está a passar uma esponja sobre o que está por trás.

Está a fazer uma má avaliação.
Se uma criança é um robô, estamos a fazer mal de certeza.

Dá-se esse caso?
Fartei-me de ver crianças paradíssimas por causa da medicação. É um efeito tóxico.

A falta de apetite é outro.
Esse é irrelevante, porque desaparece o efeito do medicamento e o apetite reaparece ao jantar, ao fim-de-semana – quando a maior parte das crianças não tomam, ou não deviam tomar. Ouvi pediatras do desenvolvimento dizer que a criança também aprende aos sábados, domingos, feriados e férias. É dizer: “Queremos as crianças numa situação artificial de aprendizagem porque aprendem mesmo quando estão a brincar.” Devo ter sido das primeiras pessoas a utilizar este tipo de medicamentos, a partir dos anos 90, na Estefânia. E lembro-me de dizer que é só o mínimo necessário e enquanto for necessário para permitir a crianças que têm capacidades e que não conseguem, porque se dispersam muito. Quero-as mal comportadas em casa.

Esta medicação pode bloquear a criatividade?
É um estudo que estamos a fazer. Parte da hipótese de que, quando aumentamos as capacidades de concentração numa determinada tarefa, inibimos outras funções, como a criatividade.

Um pediatra que vê a criança uma vez por ano pode medicá-la e avaliar se está a melhorar?
Seguramente que não. É uma asneira a que assisto todos os dias: há médicos a receitar sem saber o que está a acontecer e convencidos de que isto é como os antibióticos, ao quilo. Como cresceu, tem de tomar mais. Deve reduzir-se em vez de aumentar. Quando se pretende que as crianças estejam bem comportadas, estamos a fazer mal. O DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] sugere que se deve portar mal em dois ambientes. Uma criança que só se porte mal em casa dele e dos avós, mas não na escola já obedece aos critérios. Mas podem estar por trás disto erros crassos em casa. Pais que acharam que não há regras para obedecer, horas para dormir. O medicamento está a ser utilizado para manter acordada a criança em vez de ser para aumentar a atenção. O que precisamos a todo o momento – de semana a semana, ou de três em três meses – é saber pelo próprio, por professores e cuidadores, o que está a acontecer. Há professores que acham que a desatenção é um problema emocional e enviam para um psicólogo. Pode ser verdade, mas não em todos os casos. Outros pensam que é um problema genético (já o pai ou o tio eram assim) e é para medicar.

É como uma doença crónica em que há medicação para a vida?
Não. Quando chegam à adolescência, pelo menos metade deixa de reunir os tais critérios enumerados pelo DSM. Querem não tomar medicamentos. Sentem que ficam diferentes, mais sérios e querem achar graça às coisas.

É uma diferença entre querer e necessitar. Já não precisam?
É preciso que eles percebam que há coisas que podem não passar pela medicação, mas pelo café ou uma actividade desportiva regular. Há universidades inglesas em que fazem desporto três vezes por dia. Tem de ser pensado caso a caso. Eu quero que esteja atento na aula, mas também que esteja contente no intervalo. Não tenho nenhum medicamento que o faça.

A que sinais devem os pais estar atentos?
Há coisas imediatas, como a perda de apetite. Se a criança fica muito parada, está a receber dose a mais. Terceiro, uma sensação inicial: dor de cabeça ou barriga nos primeiros dois dias, algum tremor. As que tomam desde muito cedo e de forma continuada todos os dias, sábados, domingos, feriados e férias, podem ficar menos altas. E há a sensação de que só estudam se estiverem a tomar a medicação. Não é verdade. Os ansiolíticos e neurolépticos são hiperusados nas consultas de pediatras e pedopsiquiatras para manter as crianças bem-comportadas, esquecendo o trabalho que é preciso fazer em casa e na escola. Até aos 4 anos, muitos dos medicamentos são esses neurolépticos.

Miúdos que até aos 4 anos os pais entendem que são hiperactivos?
Que fazem muitas birras. E há um excesso de medicação de neurolépticos que, a prazo, têm efeitos sobre o corpo: ganho de peso, subida das gorduras no sangue e da glicémia; é factor de risco a tudo o que é doença vascular precoce. E sobre o cérebro porque modifica a dinâmica dos circuitos cerebrais. As crianças ficam paradas, com diminuição das capacidades cognitivas.

Deveria responsabilizar-se os clínicos que prescrevem em excesso e, às vezes, com pouca noção da realidade das crianças?
Acho que sim. Médicos de clínica geral e pediatras estão a usar estes medicamentos (há imensos que são cuidadosos) de forma quase selvagem.

Tem de se fazer uma avaliação a cada pessoa.
Claro. E reavaliar. Agora que tem 2 anos, o problema é outro. Deixou de ser hiperactivo, como deixam de ser a maior parte das crianças que ainda estão em excesso de actividade antes da puberdade. A desatenção é que lá está e continua a minar o insucesso escolar e a relação com os pares.

A criança não fica atenta só porque tomou um calmante?
O objectivo é aumentar a atenção. O metilfenidato aumenta as catecolaminas no cérebro e, portanto, a adrenalina e a dopamina. Estas ajudam a focalizar a atenção – e a criança fica mais sossegada. É o que acontece ao guarda-redes à espera do penálti. Uma criança que está a olhar para a professora, está a ouvir o que ela diz e filtra como não importante a informação que continua a chegar ao cérebro: o barulho, alguém que riu, o telemóvel que tocou, a sensação de barriga cheia, uma comichão ou preocupação sobre se no recreio alguém a vai chatear. Estas coisas, que não são pertinentes para a apreensão do que se passa na escola, rompem na paisagem cerebral daquela que não está bem acordada.

Há crianças que passam o dia em estado de adormecimento?
São inteligentes, mas a todo o momento entram imagens. É a perturbação de défice de atenção.

Que outras estratégias, antes da medicação, se devem tentar?
Queremos ter as crianças mais acordadas. Pô-las na primeira fila. Solicitá-las com frequência. Dar uma aula interessante, motivá-las. E se vê que estão com muita dificuldade para sossegarem, pedir-lhes para se levantarem, para apagar o quadro…

Numa turma heterogénea é difícil um professor dominar a sala. Estas crianças deveriam estar com outras com as mesmas dificuldades?
Não concordo nada com isso. Entre 1990 e 1997, em 7 anos, o consumo de metilfenidato nos EUA subiu 700%. Há gente a mais a tomar medicamentos a mais em Portugal. Aliás, passo mais tempo a tirar medicação do que a pô-la. O primeiro grande erro, que não é só nosso: pensar num desatento como um hiperactivo. A perturbação do défice de atenção sim, [é relevante], porque há miúdos menos atentos que são hiperactivos e outros que não, que são hipoactivos – estão a cismar, a olhar para a professora e a pensar que ela tem macacos no nariz em vez de no que ela diz.

Tem de haver um trabalho mais próximo entre o professor, os médicos e os pais para perceberem o tipo de alunos que têm?
O problema não é só a escola. A família mudou: pais com menos crianças, que chegam cansados e já delegaram nos centros de estudo os TPC. Não querem fontes de conflito, como fazê-los. Uma criança só, em vez de duas ou três.

Sem exemplos…
Sem exemplos em casa de que é preciso esperar pela sua vez e sincronizar-se com os outros, em vez de serem os outros a sincronizar-se com ela. Com o iPad à mesa, só adormece com a televisão no quarto e só faz o que quer. Com estas modificações emergiu uma percentagem de crianças e adolescentes que, apesar de terem competências escolares, não estão enquadráveis sem apoio nos tempos das aulas. E os professores querem gente sossegada.

Esta entrevista foi originalmente publicada na edição 628 da SÁBADO, nas bancas a 12 de Maio de 2016.

 

 

 

 

Menino morre com otite após pais recusarem medicamentos

Junho 9, 2017 às 12:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , , ,

Notícia do http://www.cmjornal.pt/ de 28 de maio de 2017.

Getty images

Francesco, de sete anos, morreu este sábado. Caso lançou debate. Francesco, um menino italiano de sete anos, morreu este sábado em Ancoma, Itália, com uma otite. Os pais recusaram curar a criança com medicamentos e apenas recorreram à homeopatia, acreditando que se curaria. O menino foi internado na quarta-feira com febres altas e num estado de semiconsciência, avança o jornal italiano Corriere della Sera. O tratamento alternativo tinha afectado as funções vitais de Francesco e o seu débil estado colocou-o em coma. A criança terá sido acompanhada desde os três anos por um homeopata. Já estaria a sofrer dos ouvidos, sem tomar qualquer antibiótico, há cerca de duas semanas. Esta não seria a primeira otite do menino. As anteriores já teriam sido tratadas sem uso de medicamentos. O avô do menino disse à imprensa que terá sido o homeopata, em quem os pais confiavam cegamente, que disse aos pais de Francesco que não seria preciso levar a criança ao hospital. O debate entre os que estão a favor e contra o uso de medicamentos voltou a acender-se em Itália devido ao caso de Francesco.

mais informações:

http://www.corriere.it/cronache/17_maggio_29/bimbo-morto-otite-indagati-medico-genitori-omeopatia-urbino-ancona-c1e9768e-43e1-11e7-b108-f8a0cce08e60.shtml?refresh_ce-cp

http://www.rainews.it/dl/rainews/articoli/bimbo-morto-otite-indagati-genitori-e-medico-809fdaf1-f8f9-4ab8-9062-fc91cde89a15.html

 

 

Hiperatividade, ciência versus facebook

Abril 11, 2017 às 12:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , , ,

Texto de Mário Cordeiro http://www.paisefilhos.pt/ publicado na a 7 de fevereiro de 2017.

Nem tudo o que mexe é hiperativo, nem todos os que sonham têm défice de atenção. Mas destruir um fármaco com “cultura de facebook” é demasiadamente leviano

Houve um aumento na prescrição de metilfenidato para o dobro, entre 2010 e 2014. Podem existir várias explicações, desde exagero de prescrições até melhor diagnóstico e medicação de crianças e jovens que necessitavam mas não o estavam a tomar. Por outro lado, o melhor conhecimento dos problemas de dispersão, falta de concentração e atenção, e de hiperatividade pode justificar o aumento. Especulação à parte, o que se sabe, sim, é que embora haja crianças medicadas inutilmente, é grande o número das que precisam e não estão medicadas e, entre as que estão, a esmagadora maioria colhe benefícios.

Recomenda-se este fármaco quando há uma perturbação da concentração e atenção que afete a vida das crianças de forma significativa, para lá do normal cansaço, má gestão dos estímulos artificiais que desviam a atenção ou da irrequietude natural das crianças e jovens, sobretudo do sexo masculino. Nem tudo o que mexe é hiperativo, nem todos os que sonham têm défice de atenção! As crianças, vivendo num mundo “entre quatro paredes”, precisam de se expandir, de se mexer. No entanto, a incapacidade de concentração num estímulo, sobretudo abstrato, desviando–se para “qualquer mosca que passe” faz com que a criança retire muito pouco das aulas, se sinta mais distante do “filme” que está a passar na sala de aula e invente outras coisas, mexendo-se, perturbe os outros e se comporte de modo hiperativo, sendo disruptivo para a aula e prejudicando gravemente o seu próprio processo de aprendizagem, ou então mergulhe na sua vida interior e se abstraia. Acresce que estar constantemente a ser admoestado e de castigo, ver as notas aquém do que sabe ser possível, ler apenas metade do cabeçalho e responder impulsivamente de modo incompleto, diminuem a autoestima, causam tristeza e geram problemas sociais e psicológicos.
Os benefícios da terapêutica, que pode ser instituída por um pediatra ou neuropediatra e que não necessita de ser baseada em testes e exames, vão ajudar o processo de aprendizagem e permitir à criança o desenvolvimento das suas capacidades.

O argumento de que “é um químico” é anedótico porque o cérebro funciona, exatamente, com mediadores químicos, e nos casos de hiperatividade e défice de atenção, dispersão e impulsividade, esse mediador está em falta. Com o crescimento o cérebro arranjará outras formas de funcionamento e não é precisa medicação para a vida toda, como alguns ignorantes dizem. Além disso, é boa prática as crianças interromperem a medicação nas férias letivas; a ideia de que se fica “preso a uma droga” é mais um dos mitos urbanos veiculados na Internet.
Quanto a contraindicações, nas redes sociais há pessoas que gostam muito de dizer que “é veneno”. Dá vontade de rir – leiam a bula do ibuprofeno ou do paracetamol, que dão aos vossos filhos e verão a “galeria de horrores”. Com o metilfenidato os efeitos colaterais são raros e, salvo exceções, resumem-se a situações transitórias e breves de baixa de apetite ou pequenas insónias.

O metilfenidato não dá “superpoderes”, apenas faz render melhor as capacidades naturais a estas crianças. Não ficarão engenheiros, pianistas ou escritores com o medicamento se não tiverem esses talentos, mas podem nunca vir a ser engenheiros, escritores ou pianistas, tendo esses talentos, por não conseguirem estudar, concentrar-se e andarem toda a escolaridade a saltitar de “mosca para mosca”, irritando os professores, enervando os pais e diminuindo a sua autoestima. E se pensássemos numa coisa chamada Ciência? Talvez valha mais do que o diz-que-diz das redes sociais…

 

 

 

Défice de atenção e perturbações do comportamento na escola e em casa: medicar ou não medicar?

Fevereiro 4, 2017 às 7:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentário
Etiquetas: , , , ,

Notícia do https://www.publico.pt/ de 22 de janeiro de 2017.

1103946

É uma questão tão difícil de responder como a da pertinência de um antibiótico numa infecção. Há toda uma série de perguntas que precisam de ser respondidas primeiro.

Pedro Cabral

Uma questão recorrentemente levantada por educadores, professores, pais, familiares e técnicos tem que ver com o uso de medicação em casos de “hiperactividade”, quebra de rendimento escolar, modificações de humor e alterações do comportamento.

Toda a gente foi construindo alguma opinião a este respeito, informada por familiares, técnicos e, sobretudo, pela Internet. O ruído à volta deste tipo de questão pode ser particularmente alto, importando dados que muitas vezes não foram comprovados ou que já há muito foram desmentidos.

E não são só os leigos nestas matérias que podem ter opiniões baseadas em factos erróneos. Há cerca de um ano, quando a questão do excesso destas medicações dispensadas no nosso país foi levantada, alguém com responsabilidades nesta área descreveu o efeito “calmante” como o objectivo procurado pela medicação… estimulante!

Uma situação assim complexa não pode ser abordada de forma simples, e não se pode confundir sintomas, conjuntos de sintomas, perturbações e patologias.

O erro de medicar pelas consequências, ignorando as causas

Uma criança que não pára quieta na sala de aula pode ter tudo e não ter nada. Se se mexe mais do que o esperado para a sua idade, pode ser que nunca tenha tido ninguém que lhe chamasse a atenção, pode sentir que não consegue acompanhar os conteúdos, pode estar preocupada com questões mais urgentes para ela, reais ou imaginadas (ser vítima de bullying no recreio, reconhecer risco de doença ou de separação dos pais, por exemplo). Ou pode simplesmente estar distraída, “ausente”, mas sossegada… A importância dos factores genéticos veio claramente a ser reconhecida. Portanto, num contexto de predisposição “hereditária”, que por si só pode perfeitamente não constituir um entrave ao aproveitamento/comportamento académico, um imenso conjunto de circunstâncias, em casa e na escola, pode fazer “emergir” o comportamento desatento, irrequieto, com o seu cortejo de consequências…

Nestas alturas pode pôr-se o problema de medicar ou não medicar, conforme sugestão de familiares ou professores… É uma questão tão difícil de responder como a da pertinência de um antibiótico numa infecção. Há toda uma série de perguntas que precisam de ser respondidas primeiro (se é viral, se é bacteriana, se o organismo consegue vencê-la por si, se há risco de se eternizar, de alergia, etc., etc.). Com a desatenção é o mesmo. Que tendência “distráctil” existe e há quanto tempo, que factores recentes podem tê-la feito aparecer agora, que relação com as suas capacidades escolares numa ou noutra área (por exemplo, a dificuldade de concentração pode ser muito mais difícil na leitura do que no cálculo).

Uma situação que aparece muito na consulta, sobretudo no início da escolaridade obrigatória, é a da criança que não consegue ficar quieta na sala de aula, que interrompe a professora, que se levanta e que se recusa a fazer os trabalhos na sala. Que amua ou se afasta das outras no recreio quando não fazem as coisas como ela gosta. Isto apesar da sua simpatia e das suas reconhecidas capacidades para aprender. Também na natação, ou em casa dos avós, pode haver este tipo de queixas. Um olhar para este conjunto de manifestações será fundamental para perceber se se inscreve nos critérios habituais da chamada “PHDA” (…) ou se, pelo contrário, se trata de um padrão enraizado de comportamento em casa e de interacção com os adultos e os pares. Crianças que interrompem os adultos constantemente, que se habituaram desde sempre a só fazer as coisas com repetidos pedidos e explicações dos pais, que só após “negociação” é que cumprem as tarefas de todos os dias estão na primeira linha para exibirem estas dificuldades comportamentais, de serem rotuladas de hiperactivas e de serem medicadas em consulta.

As consequências de medicar, ignorando as causas

E ficam todos contentes, os professores, porque gostam deles sossegados; os pais, porque acabam as queixas; os médicos, porque a medicação resulta. Até talvez as crianças, porque reconhecem que precisam das “vitaminas” para terem boas notas. Ficam duas questões por esclarecer. A primeira é que, mesmo podendo haver uma tendência significativa na sua dificuldade de concentração, na sua facilidade em se distrair, passível de ser melhorada pela medicação, deixam de ser pensados e prevenidos todos os outros factores que podem estar na base da actual dificuldade ou estar a agravar esta sua tendência genética. Portanto, inquietações, alterações do sono, depressão, desadequação por dificuldades específicas de aprendizagem, reconhecimento de regras, etc., tudo é varrido para debaixo do tapete. A segunda tem que ver com o facto de se poder manter um padrão de irresponsabilidade do próprio, no respeito pelos outros e na necessidade de lutar pelos seus objectivos, os escolares sobretudo. A prazo, a medicação, só por si, não vai ajudar a resolver esta dependência de terceiros. A imaturidade veio para ficar.

A medicação não é uma droga, não provoca habituação, dependência ou tolerância, e os seus efeitos secundários, tão falados na Net, são de facto menores quando comparados com a sua capacidade, que é real, de ajudar a concentrar. Podemos é estar a enganarmo-nos todos, pais, professores e técnicos, quando o objectivo é “tratar” a chamada “hiperactividade” em vez da desatenção. Enganamo-nos todos sobretudo quando são ignorados ou esquecidos os tais factores que podem estar na base, ou contribuir para agravar a desadequação escolar.

Porque neste ignorar das causas, que a medicação pode permitir, corremos o risco sério de adiar a construção da responsabilidade, pelo próprio, na gestão das suas tarefas e objectivos. Quando a tal hiperactividade tiver desaparecido, com o tempo, podemos encontrar um jovem “imaturo” porque desatento, incapaz de trabalhar sozinho ou sem ser pressionado, indiferente aos resultados, esperando que as coisas se resolvam com o tempo. Medicar ou não? A questão não pode ser essa.

(*) Neurologista pediátrico. CADIn – neurodesenvolvimento e inclusão

 

 

Página seguinte »


Entries e comentários feeds.