Confissões. Diga lá setor qual é o aluno preferido, que nós não contamos a ninguém…
Setembro 25, 2013 às 8:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentárioEtiquetas: Alunos, Escola, Professores, Relação Alunos-Professores
Artigo do i de 13 de Setembro de 2013.
Por Kátia Catulo
Em vésperas de regressarem às escolas, o i desafiou quatro professores dos ensinos básico e secundário a eleger um aluno que os tivesse marcado. Um só aluno em 20 ou 30 anos de aulas? Ficaram aflitos. Renegociaram as condições e, em alguns casos, escreveram lençóis de textos emotivos que tiveram de ser cortados com frieza. Ficam aqui as histórias resumidas de crianças e adolescentes que não só aprenderam nas salas de aula, como também deram lições que os professores vão lembrar para sempre.
Paula Soeiro, Sesimbra
45 anos, professora de artes
Por detrás de uma cara feliz está aluno a pedir ajuda -Pedro sempre foi um aluno com muito boas notas e bom comportamento. Destacava-se por ser criativo, líder da turma e solidário com os colegas menos dotados. Era, aliás, o único amigo de um aluno problemático que tinha sucessivas sanções disciplinares. Ajudava-o a estudar, ficava com ele na mesma carteira ou emprestava-lhe material escolar. Só que Pedro era bastante distraído. Perdia livros, cadernos ou roupas, chocava contra as paredes e, depois das aulas de educação física, aparecia muitas vezes com nódoas negras. Durante quase dois anos e meio, olhámos para ele como um dos melhores alunos da escola e como um caso bem–sucedido, com o qual não tínhamos de nos preocupar. Até um dia aparecer a chorar e confessar que era constantemente agredido e insultado pelo seu colega e amigo malcomportado. A violência já durava há dois anos, mas Pedro estava convencido de que conseguiria mudar o amigo com o seu exemplo e companheirismo, e até se sentiu culpado por denunciá-lo. No inquérito disciplinar confirmaram-se todas as acusações. Eu, que até àquela altura julgava que conhecia e sabia detectar os sinais de uma vítima de bullying, fiquei incrédula com a sua capacidade de dissimulação. E desde aí passei a olhar e a preocupar-me também com os alunos de excelência, os que parecem até ser demasiado felizes.
Há muitos outros alunos que me marcaram. Tantos e por tantas razões tão diferentes quanto eles o foram. Mas impuseram-me um limite de palavras que poderia escrever, o que me faz ser injusta com todos eles. Guardo as últimas linhas para a Maria, rebelde, agressiva nos comportamentos e na linguagem. Aceitou o desafio que lhe lancei de ser diferente, de quebrar o círculo de violência. Aceitou que eu acreditasse nela. Um dia, às escondidas, ofereceu-me uns brincos pequenos, simples, brancos. Orgulhosa pela mudança, mostrei-os a uns colegas; responderam-me que deviam ter sido roubados. Disse-lhes que, se assim fosse, pelo menos ela teria feito o embrulho e o laço. Ainda hoje acredito nela e ela deixa que eu acredite. E ela chegará lá, ao seu sonho. A Maria quer ser GNR.Rui Rebelo, Barcelos
professor de filosofia do ensino secundário
O que faz o setor quando descobre que mudou a vida de Bruno? Falar de alunos que nos tenham marcado ao longo de quase 20 anos de ensino pode parecer fácil. Afinal, já deve andar na casa dos milhares o número de almas que nos entraram pela sala dentro. Mas tomar consciência desse facto é o suficiente para me deixar abismado. Será que fiz alguma diferença na vida deles? E o contrário? Fizeram eles alguma diferença no meu trabalho? E quem, entre a massa já esquecida, deixou marca que, de um modo mais ou menos consciente, continua a moldar a minha consciência profissional?
Começo pela Cláudia. Sempre atenta e disponível para ouvir cada palavra, reflecti-las, descobrir a magia das ideias e do pensamento. Não nasceu em berço de ouro. Tudo o que conseguiu deve-se ao trabalho e ao talento. Acima de tudo, a Cláudia recorda-nos constantemente que aprender é superar-se, é ultrapassar os limites e vencer as limitações que a natureza e a sociedade nos impõem. É o tipo de aluno que nos exige, também a nós professores, superar-nos.
Termino com o caso do Bruno. Reprovou a Filosofia e matriculou-se nas minhas aulas para concluir o secundário. A relação com esta disciplina não parecia ter sido boa. Nem toda a gente está vocacionada para o pensamento, pelo que encaramos com resignação e profissionalismo este facto. Rapidamente percebi que não era o caso. Ele nunca a tinha compreendido devidamente. Chegados ao fim do ano e feitas as despedidas, qual o meu espanto quando vejo o Bruno reentrar na sala, abraçar-me e dizer, mais palavra menos palavra: “Nem imagina, professor, como estas aulas me mudaram.” Claro! Estas palavras tocaram fundo, e sim!, sabia-o, de alguma maneira. Porque, afinal, não é apenas o aluno que cresce com os seus professores, também o professor cresce com os seus alunos. Por isso, sim, sabia-o, mas nem sempre é assim declarado. Se mais não fora, soube-o mais tarde, o aluno que tinha reprovado a Filosofia tinha decidido tirar um curso superior de Filosofia. Ensinar não faz mudar o mundo, não consegue mudar a natureza humana, mas pode fazer a diferença na vida dos jovens.Lurdes Loureiro, Sintra
62 anos, professora de Ciências Naturais
O susto do primeiro dia é uma lição para o resto da vida – Assim que Carlos (nome fictício) entrou na sala de aula, senti um sobressalto. Foi há 20 anos, mas lembro-me de ter dito baixinho: “Ai meu Deus!” Fiquei assustada com o aspecto dele. Estava vestido de negro, com correntes a atravessar a roupa e botas da tropa. Hoje isso é banal, mas no início dos anos 90, numa escola no interior de Sintra, encontrar um rapazito de 13 anos que se vestia de gótico era algo inesperado. Conhecia o estilo das revistas e de ter visto outros adolescentes como ele na Baixa de Lisboa. Mas era raro, e o primeiro julgamento que fiz foi de que Carlos iria dar problemas. Para minha surpresa, foi desde o início um aluno sossegado. Logo nas primeiras semanas percebi que não perturbava as aulas e era cumpridor. Os colegas faziam pouco dele, mas isso não o impedia de continuar a vestir-se assim, pois assumiu o estilo como a sua identidade. A história deste aluno pode parecer inócua nos dias de hoje, mas foi com ele que aprendi a não fazer julgamentos apressados. Ao longo destes últimos 32 anos, já encontrei um pouco de tudo. Alunos com má fama de anos anteriores, refilões, eu sei lá… Mas tento seguir uma das minhas principais regras: o primeiro dia de aulas é um novo ciclo para todos os alunos.
Falar só de um aluno, contudo, é muito injusto para tantos outros que me inspiram. Passaram-se quase 30 anos e ainda me lembro de um outro rapaz que acordava às 5 da manhã para estar às 8 na secundária de Mafra. O pai não queria que ele estudasse porque precisava da sua ajuda no cultivo dos campos. Ralhava com ele, castigava-o e batia-lhe. Estávamos na década de 80 e uma boa parte dos arredores de Lisboa ainda era bastante rural. Mas o rapaz queria prosseguir os estudos e contava, na medida do possível, com a cumplicidade da mãe. Estudava às escondidas. Dei-lhe o apoio e compreensão possíveis, mas sentia-me impotente para o ajudar. Naquela altura, não havia comissões de protecção de crianças e jovens em risco, psicólogos ou assistentes sociais nas escolas. Eram outros tempos. Mas foi com grande orgulho que o vi concluir o secundário.Violeta Oliveira, Silves
65 anos, professora de ensino especial
Lutar contra bruxas e fantasmas e mesmo assim chegar ao 10.º ano- Durante os meus 38 anos no ensino, o aluno que me deixou marcas profundas foi um rapaz com síndrome de Asperger. A síndrome de Asperger “é um transtorno de desenvolvimento” em que a pessoa vive no seu próprio mundo, e cada um com a sua personalidade e características. Para esse aluno, a realidade escolar é uma confusa massa interactiva de acontecimentos, pessoas, locais, sons e imagens. Parece não existir uma clara fronteira, uma ordem ou um significado para nada. O seu mundo é habitado por fantasmas e bruxas vestidas de preto. Esse “Asperger” tem uma vida insuportavelmente caótica, na medida em que os seus interesses e aspirações mudam compulsivamente. As dificuldades em lidar com as especificidades deste aluno agravaram-se. Com o passar do tempo foi mostrando uma grande apatia perante as actividades da escola. Para ele, ter um zero ou um cinco ou um três era a mesma coisa. O distúrbio do sono é também uma condição crónica que afecta directamente a sua qualidade de vida, apresentando diariamente uma fadiga desconfortável.
Apoiar esse aluno é lidar com a incerteza, que nos vai consumindo dia após dia. Entretanto, as actividades realizadas com ajudas de alguns professores surtiram os seus efeitos. Quis que o aluno entendesse as emoções e soubesse expressá-las; tentei ajudá-lo a controlar efeitos adversos da tensão social. Vale a pena ressaltar que todos os seus comportamentos são possivelmente encontrados em qualquer criança com síndrome de Asperger típico; no entanto, quando aparecem numa frequência e intensidade suficiente para trazer prejuízo funcional para o aluno, este deve ser tratado com um cuidado especial. O seu trabalho não é consistente: depende, ainda, de muitas chamadas de atenção para realizar as tarefas, sendo necessário “pressioná-lo” para as concluir. Continua a manifestar muita teimosia, face às chamadas de atenção dos professores. Mas, hoje, esse aluno está no décimo ano. O melhor resultado foi vê–lo realizar os exames do 9º. ano com êxito e passar para o 10.º. Foi uma luta, mas conseguida.
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