O Brincar Arriscado: um direito das crianças – Carlos Neto
Fevereiro 22, 2024 às 12:00 pm | Publicado em A criança na comunicação social | Deixe um comentárioEtiquetas: atividades não estruturadas, Brincar, brincar na rua, Carlos Neto, Crianças, Direito a Brincar
Artigo de Carlos Neto, publicado na revista Sábado de 17 de fevereiro de 2024.
Quanto mais a criança se confronta com o risco mais adquire nível de segurança. A educação, perceção e controlo do risco só é possível através de confronto com situações arriscadas entre o corpo e o envolvimento físico construído e natural.
O brincar é um comportamento fundamental e insubstituível na vida humana e principalmente na infância. É uma ferramenta ancestral, uma linguagem universal independentemente da cultura ou da situação geográfica. Brincar é um direito internacionalmente consagrado na Declaração Universal dos Direitos da Criança (20 de novembro de 1959) e na Adoção pela Assembleia Geral das Nações Unidas da Convenção dos Direitos das Crianças no seu artº 31 (20 de novembro de 1989). Através do brincar de forma livre e não estruturada, as crianças adquirem experiências com o imprevisto, o imprevisível e o incerto. O brincar vem de dentro, brotando imaginação e fantasia como um tempo próprio de ser criança. Por conveniência adulta, este tipo de comportamento é por vezes negligenciado, silenciado, bloqueado e maltratado, por ser considerado perda de tempo, um mero passatempo, não produtivo e secundário. As vantagens no seu desenvolvimento são muito significativas: capacidade de adaptação, cultura de sobrevivência, confronto com situações adversas, regulação emocional, autoconfiança, relação social e competências motoras, cognitivas e sociais.
De entre muitas dimensões do brincar nas primeiras idades, gostaríamos de destacar as atividades lúdicas que implicam risco (Risk Play). Todos os animais, incluindo os humanos correm riscos na infância. Para adquirir a posição de pé e iniciar a marcha e a corrida, a criança necessitou de cair imensas vezes. É uma condição biológica inerente ao nosso desenvolvimento psicomotor. A vida exige confronto com o risco. Não existe risco zero. Quanto mais a criança se confronta com o risco mais adquire nível de segurança. A educação, perceção e controlo do risco só é possível através de confronto com situações arriscadas entre o corpo e o envolvimento físico construído e natural. A evidência científica tem vindo a demonstrar nos últimos anos, uma decadência enorme como as crianças se confrontam com situações de risco, principalmente físico-motor, no contexto familiar, escolar e comunitário. A superproteção adulta, por vezes patológica e a pandemia do medo que se instalou em todo o lado, referente a uma cultura social adversa a crianças em contextos de risco, tem vindo a desenvolver as taxas de sedentarismo infantil (inatividade física, níveis baixos de competências motoras, obesidade, etc.), diminuição de autonomia de mobilidade, contato com a natureza, e aumento da ansiedade, stress e imaturidade. Trata-se de um problema de saúde pública (física e mental), que implica a implementação de políticas públicas sobre o planeamento dos espaços escolares (naturalizados e humanizados) e espaços públicos urbanos (espaços e equipamentos com valor lúdico e de risco) que valorizem a sedução para uma mobilidade ativa mais verde e promotora da convivência social para todas as idades. É urgente libertar as crianças do aprisionamento a que estão sujeitas nas últimas décadas, para viverem a sua infância de forma plena. A infância só se vive uma vez e não é repetível. As crianças nas primeiras idades, deveriam confrontar-se com o brincar arriscado (com supervisão adequada), através de desafios de grandes alturas (saltar, trepar, escalada, etc.), grandes velocidades (escorregar, corridas, bicicleta, skate, etc.), ferramentas perigosas (machados, facas, canivetes, serras, martelos, pregos, cordas, etc.), elementos perigosos (fogo, água, etc.) desaparecer e esconder (escondidas, locais secretos, etc.), e luta e perseguição (apanhada, toca e foge, luta a brincar, etc.). Não é aceitável que se proíbam as crianças nos espaços escolares e na comunidade, de poderem subir às árvores, jogar à bola, fazer brincadeiras e jogos típicos da sua idade, fazer rodas, pinos à parede, etc. O corpo não deve ser formatado e policiado para estar sentado, quieto, em silêncio e obediente a aprender sem entusiasmo e curiosidade saberes numa escola tradicional, replicativa e conservadora. As crianças necessitam de expandir as suas energias naturais em situações de superação, aventura, risco e socialização. Recentemente a Sociedade de Pediatria do Canadá, recomendou aos seus pediatras, novas diretrizes a favor da implementação do jogo arriscado, sem supervisão adulta ou de modo muito limitado, considerando as vantagens para a saúde física e mental. As brincadeiras arriscadas permitem que as crianças tenham mais controle das suas atividades e sejam convidadas a ultrapassar os seus limites, com muitos benefícios na gestão de situações de incerteza. Estas formas de ação, não resultam em lesões muito graves ou fatais: joelhos esfolados ou, na pior das hipóteses, um braço quebrado não é assim tão catastrófico na vida de uma criança. Em outubro de 2021, foi publicado um artigo muito interessante no Jornal “The Guardien “, sobre os Espaços de Jogo Exteriores Públicos (parques infantis) na Alemanha e a posição dos “Designers” sobre a conceção novos modelos de espaços e equipamentos, mais ousados e como uma nova política para aumentar o risco nas brincadeiras das crianças, propondo uma retificação nas Normas Europeias existentes.
Os adultos cuidadores deveriam compreender melhor o significado e benefícios do brincar arriscado no desenvolvimento das crianças dos nossos dias, considerando a complexidade da nossa existência ancestral e a evolução dos modos de vida atuais. O mundo mudou rapidamente e a incerteza quanto ao nosso tempo também. Não há tempo para pensar o tempo das coisas do nosso corpo, da relação com os outros, do mundo que nos rodeia. A pressa em vivenciar tudo e a frustração de não conquistar nada. Perdemos o rumo da ética, da democracia, da consciência crítica da essência de ser, em oposição a uma valorização de uma aparência superficial e não na profundidade. Perdidos e vadios na velocidade de querer um domínio ditatorial de nós próprios num regime formatado de aparente democracia que se impõe sem ter a perceção do aprisionamento a que somos sujeitos por interesses alheios à conquista da nossa autonomia e liberdade. Talvez possamos regularmente subir às árvores, como deviam fazer as crianças, para reabilitar a nossa capacidade de contemplar o corpo lá do alto, perante a complexidade da nossa história evolutiva e a tragédia ecológica que está a danificar todos os dias o nosso planeta. Talvez o milagre (remédio/receita) para curar todos os males da humanidade, passe por voltar a ter a vontade de brincar para buscar o prazer da descoberta de existir, porque são essas energias que nos conduzem ao risco, aos limites, para se aprender a viver melhor, através da motivação intrínseca, controlo interno e suspensão da realidade. Subir às árvores como um sonho, inspiração divina, proximidade da morte (simbólica), e ter a iluminação de reabilitar o mundo (familiar, escolar, de saúde, do trabalho, do afeto, da empatia e da comunidade) para um paradigma revolucionário de convivência com o nosso corpo, os outros e o mundo que nos rodeia. Subamos todos às árvores por vários momentos para entender o que deveríamos ser, fazer e sentir na educação das nossas crianças.
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